Ao amigo Ronaldo Fraga
Por Cidinha da Silva
Sou
fã de Ronaldo Fraga. Não tanto pela moda que ele produz, da qual não entendo patavina
(de moda, não só do trabalho dele), mas pelo posicionamento político, pela
simplicidade, pela inteireza de caráter que sempre me pareceu ter. Além do que,
Ronaldo é mineiro e nós que somos das Minas estamos sempre de olho nos nossos
que se destacam em qualquer campo.
Há
uns 15 anos tive o primeiro contato com ele por meio de uma entrevista, gostei
muito das idéias, da forma simples como olhava o mundo e trabalhava. Elogiei-o
em conversa com um amigo que o conhecia pessoalmente e este me contou
maravilhas sobre o estilista. Disse que além de ser um homem bem posicionado
politicamente, um progressista num meio conservador e fútil, tinha práticas de
respeito às pessoas comuns em seu cotidiano, além do compromisso de
promovê-las, a partir do lugar de destaque que ocupa. Contou-me, por exemplo, que
no ateliê localizado em bairro riquíssimo da capital mineira e cercado por um
conglomerado de favelas, Ronaldo empregava costureiras da região, pagava-lhes
salário justo, oferecia flexibilidade de horário para que estudassem e dava-lhes
participação nos ganhos da empresa, por produção. Era um sujeito humano,
sincera e coerentemente humano.
Algum
tempo depois, encontrei-o no antigo aeroporto da Pampulha, em BH, acompanhado
da esposa e das crianças que me pareceram ser suas filhas. Eu olhava as roupas delas
para me certificar de que eram confortáveis, mesmo. É que o Ronaldo, a pedidos,
havia criado uma linha infantil baseada no conceito de conforto, haja vista que
a liberdade deve ser um princípio de vida das crianças. Segundo tinha lido, ele
começou a desenhar roupas para a filha, porque à medida que ela crescia, não
encontrava roupas adequadas a crianças, eram sempre vestimentas de mulheres adultas,
tamanho miniatura. Os clientes da loja gostaram e começaram a pedir peças para
os próprios filhos também.
Nunca
fomos apresentados, mas eu o conhecia e admirava, talvez numa emanação dessa
admiração, quando nossos olhares se encontraram, por acaso, ali no aeroporto da
Pampulha, ele, muito gentil, sorriu e me cumprimentou. Retribuí surpresa, disse
o nome dele na resposta e a esposa, para meu espanto, também me saudou. Naquela
época eu nutria uns dreads poderosos e ele, sempre atento às pessoas negras
(modelos negras sempre foram marca de seus desfiles), deve tê-los achado
estilosos, num tempo em que não se viam tantas negras de dreads em Velho
Horizonte.
Pois
bem, continuei acompanhando o estilista nos shows de outro mineiro, o Vanderli,
vestido por ele. Recentemente, estava em BH e soube de uma instalação de
Ronaldo na Praça da Liberdade, lugar lindo, por si só repleto de poesia,
escolhido para lançar nova coleção, ao ar livre, entre árvores e flores. Era
algo com poemas do Drummond, não sei se havia outros poetas também, planejei
passear por lá, mas, me enrolei com o tempo ou com a chuva e não pude ver.
Agora,
às vésperas do Dia Mundial Pela Eliminação da Discriminação Racial, leio que no
segundo dia de desfiles do São Paulo Fashion Week, Ronaldo Fraga e Marcos Costa
(artista da beleza) apresentaram modelos brancas e negras com um arranjo feito
de palha de aço como cabelo. Foi um gancho no meu queixo.
Refeita
da tontura, li a explicação dos artistas, diziam eles: “o suposto cabelo ruim é
na verdade uma escultura em potencial” e as mulheres negras devem ter orgulho
do próprio cabelo, não precisam alisá-lo. Notem como a intenção de Ronaldo e
Marcos parecia ser boa, as modelos
brancas também usaram o tal cabelo. Só que, mesmo tendo encaminhado pedido de
desculpas, que acredito seja sincero, a dupla de criadores derrapou na escolha
do signo de enaltecimento. Caíram na esparrela do afeto que tem sido
absolutamente eficaz na perpetuação do racismo brasileiro, ou seja, não é
porque a intenção é aparentemente boa e um dos autores tem currículo de
respeito aos negros que poderia blindá-lo, que a discriminação racial deixa de
acontecer.
A
arte deve ser livre, como advogaram os dois homens da moda utilizando outras
palavras, como a justificar a escolha da palha de aço para representar os
cabelos das mulheres negras, talvez, numa intenção (infeliz) de subverter um
símbolo de opressão. O caso é que, embora falemos de arte (guardadas as
controvérsias, pois há estilistas respeitáveis que não consideram a moda uma
manifestação de arte), ensina a política que são as pessoas oprimidas as que
escolhem símbolos opressores que em dadas situações são subvertidos e/ ou re-significados.
E não se trata aqui de acusar gratuitamente ao Ronaldo e ao Marcos como
opressores, mas, concordamos que eles não são os oprimidos da história. Certo? E
nenhum dos dois tem autoridade ou legitimidade para arvorar-se a revisor deste sustentáculo
de opressão das mulheres negras durante sucessivas gerações, escudando-se na
frase: “o suposto cabelo ruim é na verdade uma escultura em potencial.”
Ora,
ninguém é ingênuo aqui, vamos conversar de maneira séria. A escultura de
Marcos, desastradamente referendada por Ronaldo, ratifica a coisificação de um
atributo humano das mulheres negras, o cabelo crespo. Não é inofensivo recurso
estético, apelo estilístico e ainda menos licença poética. Não fossem os
malditos afetos correlatos ao racismo brasileiro, essa coisificação seria tão
hedionda quanto o gesto de saudação a Hitler.
Eu
te conto, Ronaldo, que ao longo de várias décadas, desde a criação da primeira
palha de aço, a opressão e desumanização do cabelo das mulheres negras tem
mudado apenas de marca, no meu tempo escolar era Bombril, no tempo das minhas
filhas é Assolan.
Creio
que nem no século XXII nos lembraremos desse episódio de repulsa ao seu desfile
como um simples acinte politicamente correto. Acho impossível que nossas
descendentes, nossas, das mulheres negras de hoje, que nos insurgimos contra o
seu escorregão na casca de banana do racismo, venham a dar um sentido positivo
à comparação entre palha de aço e cabelo crespo. Este é um símbolo do racismo
demasiadamente destruidor, como o ferro
de fritar cabelos, como a saudação nazista ou a suástica.
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