O fogo tempera o aço, como o tempo tempera as gentes
Esse post faz parte da Blogagem Coletiva Mulher Negra 2012.
Por Cidinha da Silva
“Onde você
for, que o mal se esconda
/ e não saia do lugar / porque você tem Ogum de ronda / no clarão do seu olhar.”
Naquele
agosto de 91, a primavera chegou mais cedo, quando recebi em Belo Horizonte, um
telefonema dela. Era o fim das noites de angústia, das tardes bucólicas,
burocráticas e tristes no trabalho de apenas sobreviver. Da vida de horizontes
curtos, apesar dos 20 anos.
Sueli
Carneiro me fez nascer pela segunda vez, quando, atendendo a um pedido meu, me
convidou para trabalhar e viver em São Paulo. E por isso serei grata em todas
as vidas que me for dado viver. Sou grata também pelas lições aprendidas via Método
SC. Contumaz (às vezes duro demais), mas amoroso, tal qual o Método Maia.
Sueli,
como a sinto, é essência de ferro, vento, ouro e amor de mãe. Lulu que o diga,
aquela que a vida inteira precisou dividir a mãe com o mundo e à medida que
cresceu e maturou a menina linda, sentiu orgulho imensurável dela. Confio na
irmandade taurina para afirmar.
Foi
Luanda, aliás, quem me propiciou a segunda lição do Método SC. Em uma situação
de festa, eu, em Geledés havia três meses, tive a atenção chamada por Sueli, de
maneira brusca e desproporcional. Assustada, eu não reagia e Lulu, do alto dos
13 anos e do domínio sobre o coração da mãe, avisou: “mãe, você está machucando
a minha amiga, solta ela!” E eu pude respirar.
Aquilo
rendeu pesadelos nas férias, dor da falta de entendimento e quando busquei
explicações, era tudo atribuído às cervejas. Ficou o mais importante, o tempo
tempera as gentes, como o fogo tempera o aço.
A
primeira lição foi a generosidade de Sueli ao me dar a vida, sabendo tão pouco de
mim, não conhecendo minha família, minha origem, só meus olhos ávidos de vida e
certos de que São Paulo era meu lugar no mundo. A aposta de Sueli no meu sonho me
ensinou a respeitar as pessoas jovens, a não desdenhar de seus mistérios. Esta
foi a mais preciosa de todas as lições e posso afiançar que a aprendi
direitinho.
Quando primeiro
cheguei a São Paulo, em 88, para assistir a uma das sessões do Tribunal Winnie
Mandela, eu ainda não conhecia Sueli pessoalmente, nem sabia direito como ela
era, mas quando vi aquela preta reluzente, pura luz preta no ambiente, de testa
reflexiva e sorriso franco, de olhos vivos, atentos ao mundo, ao novo, dedos
finos, elegantemente alternados no queixo e microfone armado, pensei, é ela! É esta
mulher que escolho para me fazer quem quero ser.
Eu
estava hospedada na Vila Sônia e não tinha noção das distâncias da cidade.
Então, num domingo, Sueli, que morava perto dali, deslocou-se até o lugar onde
eu estava para discutir comigo um projeto de pesquisa, para o qual faltava
interlocução na universidade. Eu me senti tão valorizada, tão importante, tão gente,
que, a partir daquele momento, passei a dedicar minha vida para provar àquela
mulher que o cuidado que tivera comigo, não fora em vão.
E
continuei indo a São Paulo todos os anos desde então. Economizava centavos para
a viagem à terra que para mim era Sol acima de qualquer cinza. Eu passava muito
tempo em Geledés e adorava quando Sueli me convidava a acompanhá-la nas coisas
que fazia. Era tanta gente importante que ela me apresentava, gente que olhava
para ela com apreço e admiração. E quando eu pegava o microfone, abusada, como
sempre fui, ela me ouvia com atenção e olhos enluarados, e sorria. Sorria e balançava
a cabeça como Steve Wonder a cantar. E eu me agigantava, Coutinho esgrimindo
seus dotes para Pelé observar.
Vinte
dias depois do telefonema que adiantou a primavera, me apresentei àquela que
passaria a comandar meu exército interior. Ainda demorou mais de dois anos para
que eu conseguisse trabalhar diretamente com ela e nesse período fui testada, inúmeras
vezes.
No
primeiro teste, outra diretora, talvez enciumada pela forma como eu idolatrava
Sueli Carneiro e também para demonstrar poder, me ofereceu, na frente dela, uma
viagem aos EUA. Eu deveria representá-la numa conferência e ler um trabalho seu.
Eu tinha 24 anos, saíra da roça para a cidade grande há pouco tempo e a
tentação era grande. Sueli, calada, apenas observava. Serena, agradeci a
lembrança e o oferecimento, mas não poderia aceitar porque não falava uma gota
de inglês. A diretora insistiu, contrariada, irritada. Argumentou que não era
necessário dominar a língua, ela treinaria a leitura do texto comigo. Não,
obrigada, eu não falo inglês, reiterei, orientada pelos velhos que sustentam
meu Ori e pela certeza da lição aprendida com meus pais, de que na vida, a
gente deve ter valor, não, preço.
Foram extenuantes
os testes ao longo de vários anos de convivência, também as dores, os jogos de
interesses e poder, sacrifícios da vida pessoal e frustrações decorrentes, que
foram matando aos poucos a alegria, e me levando a desistir da política e a retomar
o sonho da literatura. O saldo é positivo, lógico. Sou quem sou, porque um dia
Sueli Carneiro me deu a vida e, justamente, para honrar este presente, entendi
que precisava seguir meu próprio caminho e reinventar meu lugar no mundo.
E é
essa reinvenção que faço nas crônicas diárias, nos livros, nas intervenções
públicas, no aprendizado com as pessoas mais jovens. Minha cidade e minha família
me deram régua e compasso. Sueli me deu uma tela ampla para xilografar minha
história.
Ogum
iê! Sueli Carneiro! Mulher do ferro, do vento, do ouro e do amoroso coração de
mãe!
*Um cheiro para Ellen Oléria que cantou Zumbi
no meu ouvido todo o tempo em que me dediquei à escrita desta declaração de amor e
gratitude à Sueli Carneiro.
Esse post faz parte da Blogagem Coletiva Mulher Negra (blogagemcoletivamulhernegra.wordpress.com).
Comentários
Como filha de Ogum que sou, recebi a missão de te abrir caminhos que facitassem a expressão de seu enorme talento. Realizei a missão com jubilo sempre maior a cada momento de seu florescimento como intelectual, ativista e escritora. Também o fiz com a modéstia e humildade dos que sabem que ha seres destinados a iluminar o mundo e que não é possivel retê-los junto a nós por mais tempo que o necessario para que suas asas estejam firmes para voar. Tudo o mais que você disse sobre mim neste maravilhoso textos é pura generosidade e carinho que me emociona e que agradeço e que talvez esconda uma pequena dose de culpa em relação a uma mãe há tanto tempo abandonada. Rsrsrsrsrsrsrsr
Te amo , hoje como sempre, siga iluminando o mundo
Sueli Carneiro