Para não dizer que não falei de flores
Por Cidinha da Silva
Vivendo pela palavra, de Alice
Walker, me lembra o médico negro-cubano e seu olhar duro, altivo, ao passar
pelo corredor polonês de médicos branco-cearenses que o vaiavam e mandavam de
volta a Cuba, à África ou ao que entendem como sinônimo de lugar de negros, à
senzala.
Traz a médica negro-cubana, de
olhar igualmente duro, mas assustado com o Brasil real, dissonante da harmonia
racial das novelas tupiniquins veiculadas fora do país, assistidas em África e
em outros países pobres, aos quais ela emprestou o preparo técnico e o senso de
humanidade apurados ao longo da vida.
Alice, a escritora, é dura no uso
da palavra quando aborda o racismo. Com ele e com os racistas não há como ser
maleável. Joaquim Barbosa também é implacável, não descansa porque não o deixam
em paz. Para açoitá-lo usam o “quem ele pensa que é?”, como se destacassem sua
suposta arrogância, mas o que os herdeiros da casa grande ratificam, de fato, é
o “sabe com quem está falando?” Querem acuar o ministro negro num lugar de
subalternidade que, mais do que recusar, ele simplesmente desconhece.
Ambas as expressões nascem do
mesmo lugar social de privilégio, intentam dizer aos negros que não são tão
bons quanto parecem e ainda que o sejam, não têm pedigree como os brancos.
Escrever uma crônica nova depois
de tanto tempo faz emergir o tema da falta de tempo. A falta de assunto,
matéria de tantos cronistas não me afeta. Ao
contrário, a movimentação subreptícia dos racistas como reação a cada pequena
conquista, a cada ameaça de ampliação do horizonte negro, me dá uma preguiça,
uma letargia e, como Alice, chego a querer não mais escrever sobre esses temas.
Meu tempo para eles tem se esgotado.
Eis que encontro um cego atípico
e ele me dá um sacode. Enquanto a maioria de seus pares movimenta-se em gestos
contidos de tatear o mundo à frente e ao lado para entendê-lo e para definir o
próprio espaço sem incomodar as outras pessoas, o rapaz, como um vento forte,
batia a bengala com força no chão, para a esquerda e para a direita. Fazia
barulho, puxava um carrinho de mais de metro, coberto de sacos pretos, provável
camelô carregando o material de trabalho e sua história. Tudo muito rápido,
exúnico, sem óculos que lhe escondessem o vazio da caixa ocular e sorrindo,
tirando onda, indiferente aos que o julgavam maluco, obrigando-os a desviar de
sua direção aos pulos, senão ele passaria por cima deles com a bengala, o
corpo, a memória e a história.
Não sei como aquele homem percebe
as flores do caminho, mas tenho certeza plena de que os ipês vistos logo cedo,
floresceram por ele.
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