Aprendizados a partir do grito de alerta da cantora Bia Ferreira



por Cidinha da Silva

Você não sabe quem é a cantora Bia Ferreira? Vou avivar sua memória. Ela teve 10 milhões de views no clip “Cota não é esmola”. Conectou o nome à artista? Uma artista de rua até 2018, como ela insiste em dizer, e que ficou conhecida pela canção e por isso recebeu os dez milhões de views que a tornaram ainda mais famosa. Famosa, mas não rica, ela avisa.

Bia Ferreira, irada, crítica e desgostosa insurgiu-se contra os pedidos de apoio econômico e logístico dirigidos a ela durante a quarentena do Covid-19, como se a fama a tivesse tornado senão rica, detentora de sobras de dinheiro. Aos que lhe pedem doações ela pergunta se têm interesse em saber como ela está, se tem dinheiro para pagar as próprias contas, para comer, para comprar equipamentos de ensaio, apresentações e laives.  Disse mais, alertou que o teor político de sua produção artística a fez famosa, entretanto, sem trabalho suficientemente bem remunerado e frequente; mais até, trata-se de fama que não rende contratos de trabalho, justamente por ser a artista crítica demais, por cutucar as feridas, por cravar a faca na caveira.

O desabafo de Bia Ferreira expõe inúmeras questões sobre a precariedade de vida da artista negra no Brasil, discutirei algumas delas, mas antes, quero contar como conheci Bia. Foi no Aparelha Luzia, ao vivo, antes da apresentação consagradora de “Cota não é esmola”, em Curitiba, num reduto universitário branco. Soube numa entrevista que Bia nem pretendia cantar aquela música naquele dia, mas quando viu a plateia branca, não teve dúvidas, cantou.

Como dizia, eu conheci Bia Ferreira no Aparelha Luzia, ela estava sempre por lá dando uma canja ou fazendo show. Houve uma noite em que lancei livro e mais tarde ela se apresentou. Findo seu trabalho, veio até mim que ainda estava por lá com a mesa de livros aberta e puxou papo, conversamos. Ela falou um pouco da vida, da batalha com a música, da vida de migrante em São Paulo, da amada para quem comprou um livro e pediu autógrafo. Na verdade pediu para que eu reservasse o livro, pois precisava ver ainda o resultado do chapéu passado para as artistas da noite. Bia pegou todo ou praticamente todo o dinheiro que lhe cabia e comprou livros (vocês sabem que na hora de colocar dinheiro no chapéu de uma artista, as pessoas costumam vasculhar a carteira em busca daquela notinha escondida de dois reais, para não ficar feio oferecer moedas). Eu não podia ficar até muito tarde porque no dia seguinte viajaria a trabalho para Campinas. Bia me contou que iria para a mesma cidade, para a Fazenda Roseira. Eu iria de carro e tinha lugar, ofereci carona e trocamos telefones. No dia seguinte houve algum contratempo e não conseguimos nos falar, não viajamos juntas.

O que aconteceu em Campinas dialoga muito com o desafogo de Bia. Combinei o trabalho com um velho conhecido de pelo menos vinte anos, fui lançar livro e bater papo com as pessoas interessadas. Havia um cachê e a combinação do carro pra me buscar em São Paulo e depois me deixar de volta em casa. Beleza. Quando chegamos, achei tudo estranho, não via clima para uma conversa literária. Havia um espaço amplo e bem gostoso tomado por cantores de rap, atividades de circo, skate, uma pequena feirinha de comidas e artesanato; público interessado em muitas coisas, mas não em literatura.

Compreendi que a demora para dar início à minha atividade devia-se à espera de público (a divulgação deve ter sido ineficaz). Cansada, com sono e louca para voltar para casa, eu queria que a coisa começasse logo para obedecermos ao horário de término. Quando viram que realmente não haveria público, propuseram que eu fosse para o meio do pátio e começasse a falar – acho que a intenção era de que eu disputasse público com as outras atividades. Em resposta, reafirmei a necessidade de um espaço adequado, pois não estava disposta a gritar e pelear por espaço com as caixas de som, nem com o rap, o circo ou o skate.... Na opinião deles, no interior do prédio não haveria gente. Eu queria a sala, insisti; eu trabalharia com cem pessoas ou uma pessoa, o público (a falta de) era problema deles, não meu.

Começamos depois de uma hora de atraso e o púbico oscilou entre três pessoas (incluídas duas da organização da coisa) e nove. Mas não pensem que acabou, na hora de receber o cachê me pagaram metade do que havia sido combinado sob uma cândida justificativa,  “só conseguimos isso”.
As pessoas nos veem elegantes sobre o salto, mas não têm ideia do que a gente (artista) passa. Outro dia me convidaram para gravar um vídeo com um texto-mensagem de força para o nosso pessoal nessa quarentena. Eu odeio vídeos, me atrapalho toda e é algo que só faço como trabalho remunerado. Perguntei à proponente se haveria remuneração pelo trabalho e recebi uma resposta estarrecedora, não, porque não consideravam a requisição que me faziam como trabalho, tratava-se de um espaço de alento para os nossos, então, se eu resolvesse participar, poderia contatá-las.  

Pasmem, a gente é convidada a trabalhar de graça, ouve entrelinhas irônicas que sugerem que estão fazendo um favor ao nos convidar, tem o trabalho desqualificado e descaracterizado para justificar o não-pagamento, nosso labor intelectual e artístico é descaradamente utilizado para consolidar um proposta, nosso nome ajudará a legitimar e a dar visibilidade para o projeto de captação de recursos que aquele grupo apresentará a empresas e agências financiadoras e, quando enfim tiverem dinheiro para pagar pelo trabalho, não seremos nós as artistas chamadas para trabalhar, chamarão nomes maiores do que o nosso que cobram cinco vezes o que nós cobraríamos. Já vi e vivi esse filme várias vezes. Bia Ferreira nos alerta sobre isso também, as ciladas sem fim em nome da causa.

As pessoas e grupos precisam entender que proposta de trabalho sem remuneração pressupõe uma intimidade e uma camaradagem que só a amizade possibilita. Amizade é um negócio que se constrói ao longo do tempo, não é porque a gente pertence à mesma comunidade que a gente é amiga. Amizade é outra coisa. Eu posso ser chamada por amigos e amigas para trabalhar de graça, para fortalecer um projeto e eu posso fazer o mesmo com minhas amizades e devemos estar preparadas para ouvir não. Também não vou esquecer (e espero que não esqueçam) que, quando houver grana disponível para pagar pelo trabalho, essas devem ser as primeiras pessoas a serem convidadas, as que nos tempos das vacas magras trabalharam de graça para fortalecer nosso projeto.

Certa vez um grupo de teatro da minha terra me procurou, queria sugestão de um texto de alguma autora africana para ser montado (isso é consultoria, só que as pessoas não consideram que seja trabalho e nem sonham em remunerar a consultora). Eu fiz uma contraproposta, sugeri a adaptação de um livro meu para crianças. A interlocutora disse que não daria porque não tinham dinheiro. Respondi que não havia problema, a gente só precisaria deixar acordado entre nós (pela nossa palavra que tem valor, nem exigi contrato assinado) que quando houvesse dinheiro me pagariam, afinal, elas não iriam trabalhar de graça depois de terem o espetáculo montado. A interlocutora conversou com o grupo e me procurou novamente para dizer que não queriam pagar direitos autorais a ninguém (usou exatamente esses termos chocantes), preferiam que eu indicasse um texto de autora africana que estivesse em domínio público. Respondi que não tinha tempo ou interesse em prestar aquela consultoria gratuita, que elas deveriam pesquisar até encontrar o texto desejado.

Além do fogo amigo, a artista negra precisa enfrentar o jogo dos grandes que sempre mandaram e tentam explorar nosso trabalho de maneira extrativista. A gente oscila entre se descolar da massa e compor um restrito (e específico) time de elite, ou viver eternamente no nicho sendo chamada para cumprir a cota destinada a indígenas, negras, lésbicas, transexuais, periféricas, etc.  No time de elite artística está quem trabalhava antes da quarentena, teve dezenas de trabalhos cancelados, passou pelo susto dos dois primeiros meses e agora as coisas começam a se reacomodar e o trabalho volta a acontecer valendo-se de outras linguagens. O pessoal que trabalhava pouco antes da quarentena, não trabalha nada agora e passa por dificuldades sérias.

A moçada do nicho depende dos donos e donas das áreas que são as figuras chamadas para conversar e negociar com programadores de arte e cultura de instituições  importantes, arvorados a representantes da plebe rude. E os donos e donas das áreas ganham seu dinheiro de coordenação e distribuem as migalhas para os integrantes do nicho que devem ter juízo e relações boas com as chefias para estarem dentro.

Mas será que elite cultural e artística preta existe? O Paulo Lins escreveu na orelha de um livro: “Eu, pardo, mulato, negão, neguinho, pretinho, moreninho, zumbi, tiziu, azulão, picolé de asfalto, cotista de festivais de literatura, me senti pleno na leitura dessas páginas”. Ai, ai, se o Paulo Lins se entende como cotista de festivais de literatura, o que será da gente, pobres mortais?

A solução passa pelo grito de Bia Ferreira, ou seja, saber quem você é, de onde veio, porque está no lugar onde está e aonde quer chegar, sem arrego, sem ilusões, sem deslumbramento. Os grandes players estarão sempre a postos para desdenhar das nossas exigências e dos nossos projetos de futuro, das nossas estratégias para lidar com o estabelecido. Insistirão em nos chamar para a resignação com o pouco (as migalhas), em nos acusar de ambiciosas, em dizer que queremos demais. Não liguem ou liguem o dane-se e sigam.

Devemos ter a cabeça em cima do pescoço e fora d’água, entrar na lagoa enquanto nossos pés sentirem o chão, e devemos dizer todas as manhãs para o Ori, eu mereço, eu quero, eu posso, eu consigo. E segue o baile porque a gente sabe lutar, cantar e dançar ao mesmo tempo.

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