"Da dor e da alegria dos tridentes: fios que encenam a vida social e política brasileira" (excertos)
(Por: Vera Lúcia da Silva Sales Ferreira,
Doutoranda em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, na PUC-Minas).
Resumo
Este trabalho apresenta uma leitura do livro Cada Tridente em seu lugar,
de Cidinha da Silva, com ênfase na análise dos recursos literários utilizados
pela escritora para, por um lado, dar destaque à cultura afro-brasileira
e, por outro, desvendar os meandros que regem as relações sociais no
cotidiano da vida dos brasileiros.
“Reflitamos, sobre as diferenças encontradas nas duas edições. Uma é a mudança no título, do qual se retirou a palavra “crônica” e ocasionou uma abertura, em termos de significante, que permitiu ao leitor enveredar-se pelas muitas possibilidades apresentadas pelo conteúdo da obra. A outra é a retirada de algumas narrativas que tratavam da questão de gênero. Uma possível especulação a este respeito é que talvez tenha sido o desejo da autora dar uma unidade à obra, sem levantar tantas bandeiras, inclusive, porque abriu-se a possibilidade de inclusão de outras narrativas que ajudaram a sedimentá-la e propiciaram também uma nova organização em relação à divisão das partes.
Entretanto, apesar das mudanças, percebemos que já havia um intuito de unidade estrutural, de um fio condutor que pode ser percebido pela presença da mesma epígrafe nas duas edições:
Ocê pensa que caminho e estrada é tudo a mesma coisa, mas tá errado, minha fia. A estrada é uma coisa, o caminho é outra. A estrada é uma via, uma picada no mato , um cortado no chão e é muita. O caminho é quando ocê escolhe uma estrada pra seguir e chegar no seu lugar. Exu Tranca Rua.Um início de escritura que não deixa dúvida ao leitor quanto à postura da autora de querer construir, não uma picada no mato, dispersa, mas experimentar caminhos que a transportam para uma construção textual que lhe permita, inclusive, chegar “ao seu lugar”. E essa preocupação pode ser reforçada a partir de sua declaração de que “( a epígrafe) é a metáfora da obra, meu fio de Ariadne, minha linha condutora. Eu escrevi o Tridente experimentado, buscando um caminho (...)
Em Cada Tridente em seu lugar, Cidinha da Silva, sujeito, participante crítico de um processo social, cede lugar à autora que, diante da transformação a que o imaginário conduz, recoloca sua visão crítica em termos de uma concepção artística, sem se deixar levar por uma ideologia simplista, por um discurso panfletário.
Tendo como fio condutor, que permeia toda obra, a alteridade do negro, reconhece a oposição entre brancos e negros e, a partir desta tensão, fruto da ambigüidade que se estabelece, põe em evidência, às vezes, de forma bem humorada, as contradições históricas e atávicas, existentes na sociedade brasileira (...)
Seu Marabô flutua, gira de lado, tira o chapéu, cumprimenta as pessoas e sorri de lado e, dotado de um saber cósmico, sentencia:
(...) recomendou a uma moça que derretesse em tacho de estanho o orgulho que lhe obstruía o peito, os olhos e a respiração. À outra falou um negócio sobre a cavalaria que ela trazia dentro do peito. Disse que cavalo cansado não ganha guerra. Precisa parar, descansar, beber água e dormir. Disse que se o cavalo está cansado, na hora em que o cavaleiro mais precisa dele, o bicho resfolega e não responde. (...) A mim, disse que eu era dele, que carregava o povo dele (SILVA, 2007, p.21).
O conto nos remete às fronteiras do vivido e do profetizado. Ao incorporar um ente que habita outro espaço, a narrativa “Seu Marabô” deixa fluir o conhecimento que a personagem possui dos meandros da vida, sabedora de que cada um tem que carregar a sua cruz. Os aconselhamentos ressaltam a sabedoria que está nos provérbios, nos ditos populares que, aliás, possuem a mesma fonte de aprendizagem: o orgulho não leva a lugar algum, o descanso é um oásis nesta vida difícil e alguns seres aqui estão para servirem de condutores, canais para as vozes do além que, em última instância, estão dentro de nós (...)
Na segunda parte do livro, nos deparamos com a vida reinventada. A literatura, como forma de metaforizar a realidade, transforma o mundo em uma varanda e, a partir dos olhares dos narradores, o cotidiano é encenado. Os textos enovelam narrativa e drama, o que permite inovações semânticas - “Você se tortura para saber onde quebrou.” - ; sintáticas – “Opsevê um negócio desses.” - ; e lexicais – “Um passo preto canta numa viagem...”; que geram uma escrita falante e gestual que, de acordo com Leda Martins (1977), pode ser denominada encruzilhada, pois nasce de vias diversas de elaborações discursivas (...)
Na terceira parte do livro, deparamo-nos, de uma forma muito mais contundente que nas duas anteriores, com questões que falam muito de perto ao dia-a-dia da população afro-brasileira. As narrativas denunciam, com um discurso mais vigoroso, mais agressivo, a invisibilidade do negro, na representação dominante da história do Brasil; mostram a negação de sua alteridade diante da sua desumanização pelo sistema dominador opressivo e problematizam o aprisionamento, num ciclo vicioso de estereótipos e preconceitos, que reificam o racismo no Brasil, e que condenam os negros, muitas vezes, a viver alheios a seus próprios códigos culturais (...)
Levando em consideração as possibilidades de leituras, acima descritas, podemos afirmar que o livro Cada Tridente em seu lugar é encenado através de uma prática textual marcada por singularidades. A linguagem, construída a partir de uma variação de procedimentos como a ironia, o humor e um incessante jogo de deslizamentos, é uma garantia da perfeita interação que os textos têm com o leitor. Uma interação tão simétrica que escolhemos para concluir este trabalho, a reprodução de ‘Amai-vos uns aos outros’:
Escrevo pra me vingar. Declarou Marcelino durante a oficina. De um sentimento, uma situação, um (des)amor.
Imagine que eu também me vingue.
Negrinha ressentida. Você não acha que essa amargura que o negro carrega no peito é a causa principal do racismo? (SILVA, 2007, p.91)."
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