Fiz minhas velas ao mar

Hoje, o Estadão, jornal de São Paulo, publica os dez vencedores de concurso alusivo aos 50 anos da Bossa-nova. Havia uma exigência de número de linhas e também que se incluisse a frase "não quero mais esse negócio de você longe de mim". Abaixo, o meu "Fiz minhas velas ao mar", integrante da lista dos 590 não-classificados. Engarrafei meu xaveco-mor, lancei-o ao mar, dizia assim: “Ah... se Iemanjá me concedesse a graça, meu encanto, de me tirar do meu rio fundo, de pranto, só riso, sorriso, sabor do teu canto”. Evoquei o doce da Oxum e o inusitado do mar a meu favor. As forças da natureza até que tentaram ajudar, mas você desdenhou das minhas pretensões, intitulou-se muita luz pra pouco túnel, muita areia pro meu caminhãozinho. Desavergonhada, insisti. Abandonei o assovio em Fa, quis o Sol. Você chamou de brega a minha canção. Era brega, admito. Mas quanto de emoção esconde uma música brega bem aplicada na femoral do vivente? Heim, heim? Coração de pedra, esquife gelada! Eu sonhei com o amor da minha vida, amor que me daria a vida trazida do encontro das águas, me encantaria como uma sereia. Compus um samba de duas notas, as sílabas do seu nome, repetidas na pulsação do meu peito combalido. Você nem piscou os olhos antes de pisar no meu sambinha triste, jogá-lo na lama e manchar o meu nome. Persisti. Desferi o xaveco do botão (eu) que se abre depois do orvalho e se descobre flor, porque o sol (você) raiou. Bonito, fale a verdade, e original, se a senhora quer saber. Mas nem isso tocou esse músculo desalmado, encolhido entre costelas, inebriado pelas luzes da ribalta. Não quero mais esse negócio de você longe de mim, mas tudo conspira a meu desfavor. Você não me enxerga, não percebe meu amor, todos os poemas e gentilezas que faço, todas as flores virtuais que envio. Oh raios e trovões, nem os santos, nem o sol, nem o mar, nem as estrelas, nada me vale. “Diz aí, ceguinho trovador, que xaveco infalível você cantaria pra essa mulher?” “Ah mana, eu descreveria o azul”. “Mas como, se você nunca viu o azul?” “É aí que mora o segredo. O desconhecido você imagina e molda, a seu gosto. Quer um conselho de mestre, ou não?” “Quero, quero, manda aê”. “Pergunte-lhe se ela sabe o que é o azul. Antes dela desmanchar a interrogação do rosto, pegue-a de jeito, dê uma chave de pescoço no coração relutante.” “Como, meu velho? Sou um grão de areia na solidão de diva que desertifica a alma dela.” “É preciso acreditar no galanteio, minha cara, tenha fé, diga-lhe que o azul é a cor da voz de Milton Nascimento cantando Dolores Duran no ouvido, sob a lua cheia, perfumada por uma dama da noite. Infalível, maninha. Manda essa, depois vem aqui me alegrar com o desfecho, compor comigo um cordel”.

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