Literatura lesbiana

(Por: *Glória Azevedo). "Pela segunda vez participo de um concurso de literatura da chamada "Literatura Lésbica". A começar pelo título, já me parece problemático, deveria ser literatura, apenas, sem o direcionamento ou lugar demarcado do gueto, das margens. E ao invés de coletânea de contos lésbicos, como as publicações são chamadas, deveriam pelo menos serem chamadas de narrativas lesbianas, termo apropriado e reconhecido teoricamente nos estudos afins. Outra crítica que faço a esses concursos- embora participe deles e pretenda continuar participando, é quanto ao tipo de narrativa que parece ser de ordem dos relatos eróticos, com páginas de descrições das ações sexuais nas relações amorosas das protagonistas. Resumindo, toda narrativa lesbiana parece ser obrigatoriamente erotizada. Parece não haver espaço para uma análise subjetiva e histórica das personagens e dos espaços sociais. O tempo é sempre o agora, mas o agora sem reflexão. A narrativa quase sempre se resume à busca de uma mulher já assumida e entiada por sua princesa, da saída de armário de uma outra e da transa cinematográfica com a princesa encantada-encontrada e desencantada. Se assim não o for, aas histórias estarão fadadas a serem consideradas como uma "literatura sem teor lesbiano". E há que ter “línguas, dedos, xoxotas molhadas” e todo o Kama Sutra. Mas,dessa literatura o que ficará acerca da constituição das personagens, da percepção de si, da problemática individual que sirva também de questionamento para as leitoras? Essa literatura não nos representará e ainda que discorramos sobre a tirania heteronarrativa, da falta de livros que tratem das relações afetivas não apenas heterossexuais, pouca coisa do que se produz da narrativa lesbiana nos servirá. Não falo aqui nem em nós leitoras formadas e seletas (porque neste caso tende a se complicar o nosso olhar), mas nas leitoras em formação. Certamente, essas produções não as marcarão. Acho eu que continuaremos tendo duas estantes: a da literatura que durante e após a leitura nos preenche, surpreende e transforma e aquela dos relatos sexuais que depois de feita a leitura (com puladas de parágrafos e de quase páginas inteiras), fechamos o livro sem vontade de voltar à leitura que não resultou em frases guardadas nem momentos para reflexão. Que literatura estamos construindo e que leitoras estamos formando? Porque não conseguimos produzir ainda uma literatura reflexiva? Aqui me lembro agora de contos e alguns romances de autoras heteros, mas que escreveram sobre o amor entre mulheres. São textos delicados, profundos e questionadores. São textos das relações pessoais de mulheres num mundo heterossexual que não aceita a quebra dos tabus. São textos de embates, são textos poéticos, lúcidos e bem escritos. São textos que merecem ser lidos porque ficarão na lembrança. Há outra questão problemática e delicada e que talvez esteja associada ao tipo de texto que produzimos: publicamos com pseudônimo. Somos ghost writer de nós mesmas, somos sombras. O que leva uma autora a publicar com pseudônimo, coisa que ela não faria se estivesse publicando um livro de "temática heterossexual”? Acaso tem a autora vergonha do que escreveu? Tem medo de ser reconhecida como lesbiana? Ela não pode ser apenas uma ficcionista e se for ficcionista e lesbiana isso é motivo para esconder-se? De quem ela se esconde ou o que ela esconde? Esconde sua condição sexual ou esconde sua literatura? O que a faz não achar que o que escreve tenha valor literário e que seja vergonhoso ser apontado como obra dela? Sim, são anos de silenciamento e de ausência de uma literatura que tratasse dignamente as relações afetivas entre mulheres. Digamos que apenas muito recentemente as autoras brasileiras têm tirado suas narrativas do armário e posto essas mulheres que amam mulheres para circularem no papel, mas enquanto essas mesmas autoras se esconderem entre a mulher pessoa física (do Imposto de Renda) e a ghost writer da narrativa lesbiana erotizada, ela também pouco contribuirá, porque o que ela pensa, cria e materializa é intimidante também para ela e parece ferir seus princípios de mulher bem comportada, mas com uma mente criativa, engenhosa. É como se lhes perguntassem: "você escreve isso? Nossa, nunca esperei que você fosse capaz disso!" A literatura lesbiana ainda envergonha aquela que a produz e parece que o véu da inquisição paira como uma iminente varredura de caça às bruxas e que as apontará publicamente por aquilo que escrevem. Os homens que escrevem literatura gay não usam pseudônimos e essa literatura não está mais restrita ao universo gay nem tampouco classificada como tal. Ela já circula mais abertamente em livrarias, ambiente acadêmico e bibliotecas. As capas dos livros não aparecem mais com dois homens apelativamente nus. Coisa que ainda não acontece com a narrativa lesbiana. O que ocorre conosco mulheres que não produzimos uma literatura lesbiana consistente, respeitada e não envergonhada? Ou "carregar bandeira" ainda é um "cargo muito pesado para as mulheres/ essa espécie ainda envergonhada” (como fala um verso de Adélia Prado) acerca do que escrevemos e desejamos. Ainda não produzimos uma literatura madura, reflexiva e revisionista dos valores afetivos heterossexuais estabelecidos como norma e como assunto literário. Não produzimos ainda uma literatura que se sustente pelo que diz ou representa, a literatura lesbiana ainda nada propõe. Ela é um relato que termina quando se fecha a última página do livro e quase sempre é um término melancólico pela percepção de que mais uma vez reafirma a margem em que a colocaram. Não cobro à literatura lesbiana um universalismo literário e sim qualidade literária. Mas, fechando o início desse texto, continuarei participando de “concursos de contos lésbicos” e quando selecionada publicarei com meu nome e tentarei fazer uma literatura menos erotizada. Não deixarei meu texto no armário, mas também não o sucumbirei ao espaço limitado da margem". *Glória Azevedo é doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília- UnB e mestre em Literatura Brasileira também pela UnB. Professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal dô Tocantins- UFT, escreve poesias e contos aos quais chama de "exercícios voluntários de solidão involuntária". É editora do blogue www.orisodemedusa.blogspot.com

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