Véus invisíveis do ocidente
(Por: Céres Santos*, publicado no Irohin)
"No final do ano passado, li o livro autobiográfico da africana Ayaan Hirsi Ali, Infiel, a história de uma mulher que desafiou o islã, no qual a autora relata, de forma brilhante e pulsante, sua trajetória, marcada pelas mais variadas atrocidades vividas ainda hoje pelas mulheres muçulmanas. Ali, 38 anos, natural da Somália, consegue mudar o rumo da sua vida ao fugir do seu país e de um casamento arranjado pela família para a Holanda onde cursou Filosofia Política e tornou-se parlamentar holandesa pelo Partido Liberal.
Nessa caminhada de rupturas constantes, Ali, 38 anos, denuncia e combate a intolerância islâmica, o fundamentalismo irracional contra as mulheres. Após fazer, com Ali,o roteiro de um pequeno filme, Submissão, primeira parte, no qual reforça suas denúncias contra o Islã e mostra trechos do Corão escritos em árabe em uma pele nua de uma mulher muçulmana espancada e violentada, seu amigo Theo Van Gogh foi brutalmente assassinado por um extremista marroquino, que mandou o aviso: a próxima será você. A partir deste fato, a vida de Ali muda radicalmente e ela vai viver nos EUA, a convite do governo Bush, após pedido de anulação da sua cidadania holandesa.
Considerada como uma das cem pessoas mais influentes no mundo por denunciar as brutalidades do Islamismo - principalmente as cometidas contra as mulheres africanas - merecedora de prêmios na Dinamarca, Suécia e na França de Nicolas Sarkozy (Prêmio Simone de Beauvoir) Ali(1), esteve no Brasil, para proferir duas conferências, uma em Porto Alegre (RS), e outra em Salvador (BA), dia 1º de julho, no Teatro Castro Alves, a convite do projeto Fronteiras Brasken do Pensamento.
Imaginem a minha euforia, eu poder vê-la, ouvi-la e fazer perguntas, pessoalmente. Afinal, Ali ocupa um lugar singular no meu interior. Foi a partir do seu livro Infiel que eu e mais três amigas, todas ativistas do Movimento Negro Brasileiro e que buscam enfrentar o racismo na sociedade civil e na academia, passamos a refletir a partir de um lugar ‘fictício’: o das mulheres das nossas ancestralidades. Mesmo não conhecendo as histórias dessas mulheres, pois o processo de escravização a que foram submetidas impossibilitou que pudéssemos identificar nossa ancestralidade e de fazer a famosa ‘árvore genealógica’, o livro de Ali nos deu a certeza de que pelo menos uma, uma só das nossas ancestrais passou por alguma das experiências dolorosas a que as mulheres da família de Ali foram submetidas, como a circuncisão (amputação) do clitóris, a garantia da virgindade a partir da costura (sem anestesia) dos lábios vaginais, os casamentos arranjados, as violências doméstica e sexual etc.
Sofremos muito ao ler o livro. Foi uma dor visceral, ancestral que nos fez perder o sono e o fôlego. Choramos muito pensando nas dores sofridas por nossas ancestrais e nas lutas que nós, mulheres negras, ainda temos que enfrentar. Mas também vibramos com as conquistas de Ali e nos revoltamos com as armadilhas políticas a que foi submetida na Holanda, país que ainda hoje lucra com a pobreza do continente africano e que muitos dos direitos sociais garantidos aos seus cidadãos foram financiados pela exploração de riquezas extraídas da África.
Refletimos e chegamos a mudar de opinião, por exemplo, acerca de medidas tomadas pelo governo francês, quanto à proibição do uso do ‘véu’ por mulheres muçulmanas em escolas francesas. Embora entendamos que o combate ao ‘véu’ seja um símbolo de opressão do islamismo às mulheres e que elas foram alvo fácil de mais uma interdição. Visceralmente, nos tornamos um grupo de fãs de Ali. Um grupo que ainda sofre e denuncia a existência de outros ‘veús’ a que as mulheres negras da diáspora são submetidas, inclusive, no Brasil. Também ficou evidente para nós que a ida dela para os EUA tinha um propósito explícito: Ali seria uma forte aliada à política norte-americana contra os fanatismos do fundamentalismo islâmico.
No entanto, ao longo do livro Infiel sentimos ora a fragilidade, ora a negação de Ali em tratar questões que, no nosso entender, passavam pelo racismo, por temas ligados ao olhar do Ocidente à África, às mulheres africanas e às mulheres negras da diáspora. Ali é uma feminista, sem dúvidas. Mas tem limites impostos pela sua própria trajetória e, também, pelos valores ideológicos aos quais se associou. Também nos causou apreensão o fato de os EUA dar colhida a escritora, depois de ter vivido o lamentável 11 de setembro, data/símbolo histórico do ‘véu’ da intolerância fundamentalista islâmica. Porém, essa fragilidade ganhou outra versão após participarmos da conferência de Ali em Salvador, para uma platéia seleta e composta por poucas pessoas negras.
É que a autora, já aculturada pelos ideais liberalistas, vestiu um novo ‘véu’, que não lhe permite acreditar em multiculturalismo, na existência do racismo e na discriminação de gênero, raça e classe, que lhe faz creditar às culturas africanas a responsabilidade pelo atraso socioeconômico dos povos africanos e da diáspora e, ainda, acreditar que os EUA são o melhor país em termos de respeito aos direitos humanos...
É claro que vivendo 24 horas sob rigoroso esquema de segurança e trabalhando em um órgão conservador, o American Enterprise Institute, ainda não lhe foi permitido conhecer um outro EUA, nem as realidades que fogem do limite maniqueísta do mal muçulmano e do bem ocidental; da passagem estreita do mundo da fé para o da razão e saber, por exemplo que, no Brasil, os descendentes de africanos enfrentam outras guerras religiosas, fomentadas por fanáticos cristãos que invadem terreiros de Candomblé e agridem seguidores de religiões de matriz africana; que governo municipal de Salvador ordena a destruição desses espaços religiosos; que o Brasil precisou adotar políticas de Ações Afirmativas para ampliar o acesso de negros ao ensino superior e que essas medidas ainda são alvo de críticas, que as mulheres negras ainda estão excluídas do processo de ascensão social etc.
Nossas dores ainda não conseguiram o alcance que as de Ali alcançaram, muito menos o apoio internacional às denúncias de racismo, de violências religiosa, policial, de assassinatos de jovens negros no Brasil, de discriminações específicas às mulheres negras etc. Nosso grupo de fãs de Ali tornou-se uma nota destoante. Nossos embates não nos permitem ver, como ela, a superioridade dos valores do Ocidente, marcada por práticas históricas tão cruéis quanto às praticadas pelo muçulmanismo. Os ‘véus’ do Ocidente não nos impedem de identificar no público que aplaude e ovaciona Ali pessoas que não acreditam nas nossas lutas e que nunca nos aplaudem e raramente são solidárias conosco, por defendermos a democracia, o respeito à diversidade, a identidade e as culturas negras. Não foi à toa que nossas perguntas foram excluídas na seleção prévia dos organizadores do evento que preferiram questionamentos voltados às eleições norte-americanas, a Barack Obama, e ao islamismo. Como afirmou o líder sul-africano Steve Biko 'estamos por nossa própria conta'".
(* Ativista do Movimento Negro, jornalista Mestre em Educação e professora universitária).
(1) Ali possui um blog, http://ayaanhirsiali.web-log.nl/ayaanhirsiali/english/index.html (Imagens: a autora e a obra)
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