A vida imita a arte ou O presidente negro, de Monteiro Lobato

(Por *Rosane da Silva Borges) “'A obra de arte é fruto da imaginação. O pretexto é real.' Truísmos a parte, essa afirmação que se tornou banal nos círculos artísticos aplica-se, com tanto mais razão, ao livro O presidente negro ou O choque das raças, de Monteiro Lobato, cuja reedição pela Editora Record neste ano vem suscitando críticas alvissareiras. São poucas as obras que conseguem a façanha do único romance de Lobato, escrito em 1926 e publicado em folhetins do jornal carioca “A Manhã”. Uma obra de ficção que serve de termômetro para se pensar o Brasil da época – sob a égide de teorias racistas e eugenistas - e discutir os acontecimentos de nossos tempos. Lobato corrobora a insólita afirmação de que a arte é mentirosa nos seus detalhes para poder ser verdadeira na sua globalidade, ao contrário da história, que costuma ser verdadeira nas suas minúcias e mentirosa na sua totalidade. Com indiscutível elegância de estilo equiparável a de escritores como Gabriel Garcia Márquez e George Orwell, O choque das raças ou O presidente negro, cujo subtítulo era o “romance americano do ano 2228”, é pródigo em previsões/antecipações de fatos com os quais viveríamos não em 2228, mas neste 2008. A história de O presidente negro é narrada por Ayrton Lobo, funcionário da firma paulista Sá, Pato & Cia., amante de carros Ford (diz a lenda que, à época, nove entre dez brasileiros ricos almejavam um Ford), avesso a chefes vaidosos, hostil ao cotidiano do ambiente de trabalho, admirador da genialidade dos cientistas. O carioca Ayrton sofre um acidente de automóvel na estrada Rio-Petrópolis e é socorrido por um cientista arredio, o professor Benson. O leitmotiv do único romance adulto de Lobato, escritor reconhecido pelos seus contos infantis, é o porviroscópio, invento extraordinário, uma espécie de televisão holográfica, criada por Benson, que consegue, por meio do excêntrico aparelho, prever acontecimentos futuros. A lente do porviroscópio alcança o mundo até 3458. Encantado com o progresso da ciência, deslumbrado com a arte da retórica e cada vez mais enfadado com a monotonia da firma Sá, Pato & Cia., Ayrton é a pessoa ideal para escutar as previsões do porviroscópio reveladas inicialmente pelo doutor Benson, que logo em seguida morre, e depois pela sua filha, Jane, por quem Ayrton se apaixonara; é ela quem desvenda a ele os acontecimentos: no futuro que o porvoriscópio permite enxergar, descortina-se a eleição do 88º presidente norte-americano, numa disputa presidencial inédita entre um candidato negro e uma mulher branca, o avanço dos experimentos genéticos (a ciência tornaria possível a existência de seres vivos dobrados, equivalentes aos clones dos nossos tempos), a polarização das discussões políticas em torno do feminino e do masculino, o papel indispensável dos meios de comunicação como mediadores das relações sociais, antecipando o intercâmbio simultâneo e instantâneo entre os habitantes do planeta. (nesse quesito, podemos lembrar das antevisões de Marshall Mcluhan, teórico canadense que cunhou a expressão "aldeia global"); a Europa seria conquistada e colonizada por chineses, o Brasil estaria fadado ao “castigo” da mestiçagem – exceto no Sul branco, que se funde à Argentina para formar a segunda nação mais progressista do planeta (...). Pelas lentes do porviroscópio descobre-se, ainda, que a roda, que fora a maior invenção mecânica do homem, não passará de peça de museu. O rádio-transporte anulará o corre-corre cotidiano das pessoas. Em vez de irem todos os dias para o trabalho e voltarem espremidas num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, as pessoas usufruirão da comodidade de executar suas tarefas em casa, de onde as irradiarão para o escritório. Trabalhar-se-á a distância, feito conseguido recentemente com a Internet. Mais do que servirem de objeto de análise, como ensinou Freud, os sonhos seriam fartamente exibidos no cinema como entretenimento. O livro, como se vê, é inapelavelmente prospectivo e futurista. Segundo as revelações de Jane, três candidatos disputarão os votos na eleição americana: o negro Jim Roy, a feminista Evelyn Astor e o presidente Kerlog, candidato à reeleição. As contendas em torno das relações de gênero favorecem a eleição do candidato negro, que obtém 54 milhões de votos (o Partido Masculino ficara com 51 milhões e o Feminino com 51,5). A vingança da população branca, que se alia ao partido das mulheres, é de uma maldade engenhosa: a fabricação de um produto para alisamento de cabelos crespos. O negro que se aventurasse na mudança de sua estrutura capilar estaria condenado à esterilização. Eis a ardilosa reação contra a inaceitável vitória negra. No âmbito das relações de gênero, a situação mudaria significativamente: em 2228 a mulher conseguira se livrar do jugo masculino, participando da vida nacional em pé de igualdade com os homens. No Brasil de 1926, orientado por teorias racistas, Monteiro Lobato é um defensor aguerrido dos ideais eugenistas. O escritor confessava-se admirador dos Estados Unidos, que, na época de publicação do livro, serviu de exemplo para a definição de uma modernidade brasileira: desenvolvimento econômico, em particular da indústria automobilística, Lei da Segregação Racial... Em carta a Renato Khel, médico brasileiro responsável pela expansão das idéias eugenistas no país, Monteiro assevera: Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque [o livro], grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. (...) Precisamos lançar, vulgarizar estas idéias. A humanidade precisa de uma coisa só: póda. É como a vinha. Lobato.” O presidente negro, mais do que uma ingênua obra de ficção futurista montada em torno de um inverossímil aparelho de ver o futuro, expressa anseios e medos de um país que nega, veementemente, as ancestralidades desconfortáveis. Lobato acreditava piamente que a eficiência equacionaria todos os problemas materiais dos americanos, como o “eugenismo resolveria todos os problemas morais”. Reurbanização, disciplina e políticas de higiene pública foi o tripé que sustentou as políticas pensadas para tornar o país “civilizado”. O livro apóia-se em ideais racistas, que procuravam na ciência a sua legitimação. Aspirava-se a pôr ordem no “caos social” (medo burguês da multidão, da população majoritariamente negra deixada a sua própria sorte, principalmente nos centros urbanos). A solução tupiniquim foi, como se sabe, inspirada nas teorias degeneracionistas européias do século XIX que criticavam a miscigenação dos trópicos. Com a forte possibilidade de se ter pela primeira vez na história dos Estados Unidos um dirigente negro, o livro de Lobato revela sua face assustadora. Muito se tem especulado se os EUA (e o mundo) estão “preparados” para ter um presidente negro. A prêmio Nobel de Literatura, Doris Lessing, disse, sem rodeios, em entrevista ao diário sueco "Dagens Nyheter" que, caso consiga chegar à Presidência dos Estados Unidos, o senador Barak Obama poderia ser assassinado. A vingança da população branca no romance lobatiano foi o gradativo, mas não menos eficiente, extermínio da “raça negra” por meio do processo de alisamento de cabelos. Pelo muito do que a obra profetizou, uma preocupação é inescapável para as eleições americanas de 2008: qual seria a reação daqueles que, como disse Lessing, estão “despreparados” para aceitar a idéia de se ter um presidente negro? Blog e charges racistas de plantão já mostraram a que vieram. A famosa revista The New Yorker publicou caricaturas de Obama e sua mulher, Michelle, em que os dois foram designados como terroristas. Pelo que dizem por aí, isto é só o começo. Fiquemos vigilantes!" (*Rosane Borges é doutora em Jornalismo e Linguagem pela Escola de Comunicações e Artes da USP, diretora do Instituto Kuanza, integrante da Cojira-SP).

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