Entrevista de Cidinha da Silva a Joana Pinto e Cláudio Pedrosa*
Cláudio Pedrosa: Iniciando com uma questão de identidade ou de posicionamento, em
relação à vida profissional, como você se define hoje? Ou seja: o que você faz
“para viver”? Você é historiadora, escritora, blogueira, educadora? Qual sua
atividade principal e como você se sente em relação a ela?
Cidinha da Silva: Para viver eu escrevo crônicas, textos
opinativos, contos, novelas, romances, letras de canções e dramaturgia, é minha
atividade da alma, a principal. “Para viver” eu ministro cursos e oficinas, dou
palestras, uma ou outra consultoria, escrevo projetos, relatórios e textos por
encomenda.
Joana Pinto: Eu queria saber um pouco da sua trajetória com a linguagem, suas
experiências, histórias ou reflexões que você gostaria de contar...
Cidinha: É algo processual, construção, sempre. Eu
cresci muito do primeiro para o sexto livro. É algo que me alegra. O mais
difícil continua sendo me livrar dos cacoetes militantes, mas sou disciplinada
e persistente nessa busca e gosto dos resultados que tenho alcançado. A prosa
poética é onde melhor me encontro, me situo, emito minha voz, entretanto,
escrevo também muitos textos opinativos. Tem uma galera que me lê e que gosta
deles em especial, me dizem que tenho boa capacidade de análise e argumentação.
Mas o que gosto mesmo é de surpreender a mim mesma pela beleza e pela poesia e,
conseqüentemente, gosto de surpreender a quem me lê. Tenho uma expressão
termômetro (conhecida de vocês, gente de Goiás e da gente de Minas) que é o “nossa
senhora”. Ela é muito mais do que uma impregnação católica, vem daí, lógico,
mas transcendeu, é uma interjeição de múltiplos usos, muito característica da
gente. A mim ela conecta com dimensões profundas do dentro. Então, eu me testo
na leitura oral dos textos. Quando sou obrigada a pausas de onde brota um
“nossa senhora”, é sinal de aquela passagem me comove e de que a formulação
está boa, afinada. Quanto mais intenso e sentido é o “nossa senhora”, mais a
linguagem é signo fiel do que pretendo dizer. A linguagem do poema continua
sendo um problema, pois não quero escrever como a escrita que critico e se
intitula poema, na verdade, um texto (pobre, às vezes paupérrimo) em prosa,
cortado por linhas. O trabalho com a forma inexiste, é só sentimento,
sentimento e mais sentimento, transmitido por uma percepção de quinta. Por
outro lado, há os formalistas, uns chatos, sem vivência, sem sangue, sem
pulsação de vida e cheios de retórica em torno da arte. Mesmo que a minha
percepção seja boazinha, estou longe de produzir poemas que me satisfaçam,
porque a forma ainda está muito precária.
Joana: Como tem sido sua
relação com a língua portuguesa pensando tanto o contexto brasileiro quanto a
diáspora africana? E com os idiomas de origem africana ou indígena?
Cidinha: Eu adoro a língua portuguesa, desde criança.
Gosto principalmente da palavra, do nome e seus significados. Gosto de escolher
a expressão mais adequada para significar o que desejo comunicar, seja um termo
usual ou não, não importa, o que persigo é a precisão. Passei muito anos
escrevendo textos cheios de adjetivos, crendo que eles emprestavam intensidade
para as coisas. Hoje acredito muito no verbo e no nome, sou parcimoniosa com o uso dos
advérbios e adjetivos. Busco uma expressão econômica, enxuta, de pouco saramaleque.
De áfrica e
das culturas indígenas tenho escolhido nomes, além da ambiência para aninhar,
projetar, esgrimir, entoar a palavra. Meus livros Kuami e Os nove pentes
d’África, principalmente este, são ótimos exemplos dessa busca. O mar de Manu
também, quase esqueço.
Gosto de
escolher nomes pertencentes às culturas e etnias que me inspiram ou abordo nos
textos. Os nomes do Manu, por exemplo, são comuns numa região próxima ao Norte
da África, influenciada pelo Islã: Kadija, Tidjane (ambos absorvidos da leitura
de Amadou Hampatê Bã) Baya, Kofi.
Kuami, com
essa grafia, é um nome banto, mais próximo do Quimbundo, Kwame, por sua vez, é
do Swahili. Dara (mãe do meu Kuami) é Swahili. Naomi, não sei a origem, mas é o
nome da modelo negra mais reconhecida de todos os tempos. Hércules e Helena são
gregos e intencionalmente escolhidos, pois eu queria sugerir que Naomi amava
seres mitológicos (foram seus dois amores). Sete Lajedos é o nome de um
boiadeiro, entidade mítica das religiões afro-brasileiras. Quem detém esse nome
no livro é um menino curandeiro, filho de quilombolas e afilhado de um pajé. Didó, que, por sua vez, é uma lembrança de “Didó, o curandeiro”, livro de Sônia
Hirsh que me encantou durante muitos anos. Nando Octopos é uma brincadeira com
a sonoridade. Matias Corujão segue a mesma linha. Paulinho da Viola Mágica,
Arlindo Cruz do Firmamento Real, Patápio Harmonioso, Pixinga, Ademildes Chorosa
da Fonseca são referências a ícones da música brasileira presentes na história
de Kuami e Janaína.
Ajagunã e
Anauá, personagens do Pentes, são nomes indígenas brasileiros, filhos de Aroni,
um homem que se chama Aroni, o nome do auxiliar de Ossãe, de Katendê. Onirê, o filho de Ogum, filho de Francisco
Ayrá no livro, anda a esmo pelas estradas e é provável que o faça porque ainda
não encontrou um caminho, movimenta-se porque está em busca de algo que talvez,
nem ele mesmo saiba o que é. Lembro-me de um filho de Ogum, tolo, infantil e
enciumado que reclamou de que todas as virtudes do livro estavam nos filhos de
Xangô. Eu não inventei nada que fosse dissonante da natureza de Ogum, meu
trabalho é arquetípico, me interessam a divindade e suas manifestações na
terra. Não me interessa(m) o(s) filho(s) ressentido(s) da entidade que talvez precise(m) de terapia para compreender as próprias idiossincrasias
Eu procuro
fazer um trabalho profundo de compreensão da natureza dos meus personagens e
isso definirá a linguagem utilizada por cada um deles. Às vezes atribuo orixás
ou nkices a eles e essa será sua gênese de construção. Barbinha, narradora do
Pentes, é flagrantemente uma filha de Matamba. É ela quem movimenta tudo, os
saberes dos mais velhos, o aprendizado dos mais novos, a narrativa.
Gosto de usar
referências banto, sempre que posso ou tenho conhecimento. Estudo também, para
conhecer mais.
Cláudio: Creio que você ficou conhecida inicialmente com
seus textos ligados à escrita acadêmica. Como foi que se deu para você essa
passagem para a escrita mais poética ou literária? Trata-se de uma viagem sem
volta?
Olha, para
mim é interessante e surpreendente essa percepção. Eu organizei um livro muito
importante, que neste 2013 completa 10 anos, chamado Ações afirmativas em
educação: experiências brasileiras, um dos 10 primeiros sobre o tema no Brasil.
Ele está na terceira edição, tem 8 mil exemplares circulando por mãos e
estantes e sempre foi muito utilizado por estudantes de graduação, bolsistas de
iniciação científica, em artigos e monografias sobre o tema. Talvez por isso
você tenha essa impressão, além de ser algo que você valora. Entretanto,
reconhecimento (embora você tenha falado de conhecimento) não tive, não. Detecto
longos parágrafos do meu pensamento utilizado por algumas pessoas sem qualquer
menção ao meu labor intelectual, principalmente no que concerne ao processo
nacional e internacional da luta política que abre campo para adoção de ações
afirmativas de promoção da igualdade racial, cópia mesmo. Um amigo uma vez me
explicou que não pegava bem me citarem porque eu não tinha titulação, deve ser
isso.
Eu creio que
me tornei conhecida porque integrava uma organização de mulheres negras aclamada,
e me beneficiei muito da visibilidade que esse pertencimento me dava. Foi pelo
ativismo político, não pela suposta escrita acadêmica que construí certo nome.
Nunca tive perfil ou atuação acadêmica. Gosto muito de estudar, mas pelos meus
próprios métodos, sem estar em sala de aula. Ali, a posição que gosto de
exercer é a de professora.
Assim, não
tenho como voltar para um lugar que nunca foi ponto de partida para mim. Posso
estar nele (a academia) porque a idade vai chegando e a gente pensa numa
velhice tranqüila, sem grandes atribulações, e pode ser um caminho, estudar e
fazer concurso público em uma universidade. Mas só por isso.
Joana: Sua produção detém
hoje uma posição de destaque no cenário da literatura nacional, sendo
identificada no índice de autoras e autores do Portal da Literatura
Afro-brasileira (UFMG). O que você pensa sobre essa posição? E sobre este gesto
de identificação de uma “literatura afro-brasileira”?
Cidinha: Detém? É uma percepção sua que não me
convence tanto. Não tenho ilusões, somos poucos, principalmente poucas mulheres
negras a escrever profissionalmente. Neste quadro de escassez, não é tão
difícil ser lembrada, além do que, faço um trabalho direcionado ao não
esquecimento, deixo minha marca no mundo. Isso faz parte dos meus propósitos
maiores nesta existência.
Quanto a ser identificada como autora
de literatura afro-brasielira, penso que é uma alcunha adequada, não me
diminui, nem me faz maior, tá na faixa. Não é demérito, mas também não é
honraria, é uma classificação embasada em determinadas características, às
quais estão presentes na minha produção, posto isso, acho justo ser
identificada assim. Agora, se a pergunta está relacionada ao debate teórico de
como nominar essa literatura, negra, afro-brasileira, afro-descendente, isso
não me importa uma gota sequer e não me debruço sobre isso. Sou uma mulher negra
que escreve prosa, predominantemente, de um ponto de vista afro-centrado. Isso
me basta, o mais é leitura de quem me lê.
Cláudio: Nos contatos que tive com algumas educadoras e ativistas de
Geledés, além dos/as jovens dos projetos Geração XXI e
Afro-ascendentes, fiquei com uma impressão de que o sucesso daquele
trabalho dependia de muito esforço e disciplina. Eu diria uma disciplina quase
marcial. Lembro-me de uma imagem na recepção da Sede de Geledés, que me deixou
impressionado: uma mulher negra empunhando, altiva, uma lança e um escudo. Acho
que, por isso, vejo sua trilha pelo caminho da arte literária como uma mudança,
um exercício de suavidade que não parecia útil ou possível naquele contexto.
Como você vê isso? É uma guinada ou uma continuidade do mesmo processo?
Cidinha: Ah... é uma guinada, graças a Zambi! Eu não
tenho mais energia para o ativismo político, para entregar minha vida a um
projeto coletivo, como fiz por longos e penosos anos. É preciso ter alegria,
satisfação, contentamento no trabalho que nos toma a maior parte do tempo da
vida, eu não tinha mais, era estruturalmente infeliz. De verdade, sempre quis
escrever, mas protelei enquanto pude a ação dessa força-motriz e depois que ela
teve espaço para se manifestar, esse sim, é um processo irreversível. Mas não
se iluda, a disciplina e o espírito aguerrido foram coisas que levei comigo
para a instituição, não foi ela quem me deu, e continuo com essas
características que, para mim, são muito salutares.
Joana: Eu sou muito fã dos
seus contos e das sutilezas de sentidos que você produz nos seus textos. Nas
frases curtas, ao invés de “objetividade”, o que eu leio são muitos sentidos
que precisamos completar, parece uma “esquiva” ou movimento indireto. Acha que
sua escrita pode ser interpretada como um jogo de capoeira?
Cidinha: Acho que não, porque embora eu seja fã
de Capoeira Angola, não sei jogar, não aprendi. Eu precisaria ter a Capoeira no
corpo, no meu repertório de movimentos para me sentir confortável em analogia
tão nobre e generosa.
Eu sei ler um jogo de Angola, como leio
uma partida de futebol, leituras bem particulares, não vou muito além da
identificação dos bons jogadores e sei bem o tipo de jogo que me agrada. No
caso da Angola, gosto dos jogadores econômicos, sabe? Aquela figura que deixa o
adversário se exibir como pavão inconseqüente, achando que assim o intimida. O
bobão mostra tudo que tem e o jogador econômico só estuda, observa, ginga e faz
os movimentos básicos, essenciais, necessários, no mais, ele engana o
adversário, brinca. E quando o adversário já queimou toda a lenha ele dá um
único golpe, podem ser dois ou três, uma seqüência pequena, e abre os braços
numa chamada para a figura não apanhar mais ou o berimbau chama os dois pra
evitar o pior.
Tem um escritor baiano chamado Fábio
Mandingo, cuja literatura é a mais pura e bela Capoeira Angola, ele, sim, é um
angoleiro legítimo na lida com a palavra.
*Joana Pinto: Professora da área de Letras da Universidade Federal de Goiás
Cláudio Pedrosa: Mestre em Psicologia Social (PUC São Paulo)
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