Preconceito racial, discriminação e racismo, distinções de letramento
Por Cidinha da Silva
Certos amigos, aborrecidos,
perguntam-me se gosto de tudo em Lado a lado. Não, não gosto de tudo. Fico
incomodada, por exemplo, com a frouxidão da personagem Eulália (Débora Duarte),
sinto falta de coerência. Num dia ela se junta ao povo na manifestação em
frente à delegacia para libertar Jurema (Zezéh Barbosa), a mãe de santo e
quitandeira negra, valendo-se de discurso respeitoso à uma mulher religiosa,
mesmo que não seja a sua religião, como declara ao filho delegado (Guilherme
Piva).
Em outro dia, durante jantar
familiar, Eulália diz que a neta Sandra (Priscila Sol) não deveria passar tanto
tempo no morro ao lado daquela mulata, referia-se a Isabel, personagem de
Camila Pitanga. Pode ser que a gênese de Eulália seja mesmo a incoerência, a
tergiversação de acordo com a conveniência (como é comum nas relações entre
brancos e negros no Brasil), mas me parece muito mais a necessidade de oferecer
texto para que uma atriz consagrada como Débora Duarte tenha mais ação nas
cenas. Eu ficaria mais contente, caso a carolice dela fosse mais confrontada
com os valores de Padre Olegário (Cláudio Tovar), personagem interessante,
interpretado por um ótimo ator.
Não gosto também da relação entre
Sandra e Teodoro (Daniel Dalcin). Há um buraco ali. Sandra amamenta. Que marido
em lua de mel não percebe isso? Leite materno tem cheiro, gosto, será que o
ex-donzelo não faz nada com a mulher amada que o obrigue a perceber o cheiro e
o gosto do leite? A não ser que, por
amor, Teodoro já tenha entendido tudo, mas mantenha-se calado. Leite vaza,
empedra o peito de uma mulher que amamenta de maneira errática como Sandra. Estamos
diante de uma mãe inverossímil.
O bom mocismo romântico (e
machista lustroso) de Edgar (Thiago Fragoso) é cansativo. Ele perdeu uma chance
enorme de crescer como homem ao reduzir a sociedade na escola de Isabel à
promoção de um espaço para sua amada trabalhar e realizar um sonho. É muito
pouco diante de causa tão imensa (possibilitar a escolarização de crianças
negras 25 anos depois do fim da escravidão). Espero que a inauguração da escola
possa tocar seu coração de mocinho apaixonado, para a compreensão de seu papel
estratégico como mecenas da educação dos negros. Que Edgar coloque a própria
fortuna, construída honestamente, a serviço do crescimento intelectual,
esportivo, cultural dos negros que o cercam. Seria um ótimo recado para o
pessoal de hoje. Este mesmo que bate nos ombros dos negros, chamando-os de
irmãos, de manos, quando são acolhidos nos espaços de socialização dos negros,
mas não fazem ação afirmativa de promoção da igualdade racial na própria
empresa.
Mas o que mais me desagrada é a
forma como a expressão preconceito (sequer é o preconceito racial) tem
dissimulado a força da discriminação e do racismo ao longo da trama. Meus
amigos dizem que é por ação de Ali Kamel, orientação global. Tenho dúvidas, a
mim parece mais a ausência de letramento racial.
O preconceito é aquela concepção
interna que uma pessoa carrega e só se torna conhecida quando é externada de
alguma forma. Na novela, Albertinho
(Rafael Cardoso) tem conhecidos preconceitos raciais contra negros, inclusive
seu fetiche por mulheres de melanina acentuada, Isabel, Gilda (Jurema Reis) faz
parte do arcabouço de concepções prévias e utilitaristas sobre as mulheres
negras. Branca para casar, preta para cozinhar, mulata para fornicar, como diz
o velho ditado.
Entretanto, quando Albertinho
discrimina os dois meninos negros do morro que, escondidos, assistem ao treino
de seu time de pernas-de-pau, não se trata de preconceito, é discriminação
racial. É a materialidade do preconceito racial, discriminação, portanto, que
humilha aquelas crianças, impede que elas possam assistir passivamente a um
treino de futebol de janotas brancos, apenas assistir, nada mais. Preconceito
racial é o que o vilãozinho conquistador nutre pelas crianças negras,
considerando-as inferiores, subalternizadas e indignas de mínimas atitudes de
lazer e fruição. Quando ele as escorraça das laterais do campo de futebol,
quando deliberadamente humilha seres inofensivos, pelo simples fato de serem
negros, isso é discriminação racial, é ação discriminatória, é atitude que
extermina a humanidade dos alvos do racismo (as crianças).
As atitudes de discriminação
racial são diversas, vão das falas aos olhares, aos muxoxos, aos risos de lado.
Está presente em todas as vezes que o garanhão Umberto (Klebber Toledo) ironiza
a queda de Albertinho por mulheres negras e pobres, nas caras de nojo que
Carlota (Christiana Guinle) faz ao falar de pessoas negras, em todas as
atitudes e comentários desdenhosos de Fernando (Caio Blat) dirigidos aos
negros, seus descendentes e sua história.
Tudo isso, o preconceito e a
discriminação racial são parte de um todo chamado racismo, um sistema
ideológico espraiado e arraigado em instituições e corações, que esvazia de
humanidade seus alvos, os serviliza e constrói privilégios para aqueles que
exercem o poder. O preconceito racial, então, diferente de outros tipos de
preconceito, motivados hipoteticamente pelo desconhecimento, está a serviço da
manutenção de um sistema de poder, de exploração que, no Brasil, tem
cristalizado o lugar de mando dos brancos em detrimento dos negros. A discriminação
racial, por sua vez, é o braço ativo do racismo, é o que define a eficácia de
seu modus operandi.
É fácil de compreender, nem é
preciso desenhar. É só ter coragem para enfrentar um sistema ideológico pujante
(não é invenção ou apego a o passado), atualíssimo e destruidor, que
hierarquiza as pessoas de acordo com seu pertencimento racial e gera
privilégios para as outras consideradas superiores. É só tirar os pezinhos do
chão, o bumbum da cadeira e arregaçar as mangas para infundir o letramento
racial.
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