Um caso de amor entre vela e pólvora
Por
Cidinha da Silva
Que cheiro de vela queimada, diz
o motorista, apertando o nariz. Vela, não, parafina, oh animal, corrige o
cobrador, meio embriagado. E do que é feita a vela? Pergunta o condutor,
altivo. Eu falei que o cheiro é de parafina, só isso! Perguntei do que é feita
a vela, insiste o motorista.
Ficam naquele vai-não-vai até o
cobrador sair com essa: a vela só existe por causa do cordão. Como é que é?
Estranha o motorista. Vela é vela, rapaz, com cordão ou sem cordão, o que vale
é a forma, ela é vela. O cobrador retruca, descrente e sem alteração, vela só é
vela se tiver pavio. Rapaz, diz o motorista, você é um defunto morto e eu não
vou acender vela pra você. Vou dar outro exemplo: uma arma é uma arma, com bala
ou sem bala, compreendeu truta?
A cronista ria, observava a
paisagem humana no trajeto do coletivo enquanto buscava símiles, metáforas e
metonímias para os textos diários. Em uma piscada de olhos compreendeu o cerne
do debate filosófico entre o cobrador e o motorista, tratava-se ali da
operacionalidade das coisas. O motorista era bom de lógica, daqueles que
enxergam à frente, enquanto os outros pensam curto, no limite das coisas. Se
voltar para a escola (é jovem) irá longe, tão longe quanto sua capacidade de
raciocínio.
O preconceito racial é a
parafina da vela, matéria prima que se fará notar pelo cheiro, caso o pavio
seja aceso. A discriminação, então, seria o pavio? Não! Parafina e pavio
apagado não cheiram à vela queimada. A discriminação é a pólvora que detona e
exala o mau cheiro do preconceito. Provoca incêndios, destruição individual e
em massa, desalento, cerceamento da liberdade e morte.
Pronto! Estava compreendida a
operacionalidade das coisas. Tivesse a cronista um cachê qualquer e justo seria dividi-lo com cobrador e motorista.
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