Um princípio da ação afirmativa na novela Lado a lado
Por Cidinha da Silva
Antes de o comparsa de Caniço (Marcello
Melo Junior) atear fogo na escola mantida
por Isabel (Camila Pitanga) no Morro da Previdência, Laura (Marjorie Estiano) e
Sandra (Priscila Sol) iniciaram visitas a todas as casas, cujas crianças ainda
não estavam matriculadas para convencer os pais a fazê-lo. Esta atitude é um
princípio básico das ações afirmativas, ou seja, é preciso ir até as pessoas, às
quais a ação se destina.
Não basta oferecer a oportunidade
e esperar, confortavelmente, que os interessados apareçam. É preciso
encontrá-los e também aos temas que os levaram a estar fora da solução do
problema. No caso da novela, em transposição válida para dias de hoje também,
muitos pais, principalmente eles, são refratários a que as crianças freqüentem
a escola porque trabalham e precisam contribuir para cobrir as despesas da
casa. Laura e Sandra vão construindo contra-argumentos: sim, pode ser que eles
precisem trabalhar, mas precisam estudar também. E, de certa forma, as
professoras devolvem aos pais e às mães a responsabilidade por prover futuro
melhor para os filhos.
Em dado momento, Percival (Rui
Ricardo Dias), sobrevivente da Guerra do Paraguai, líder comunitário, pai
zeloso, mas, turrão, argumenta que não deixará os filhos irem à escola porque
só os pais devem educar. A orientação oferecida na escola confundiria a cabeça
deles. Em tempos de obscurantismo religioso e de princípios dogmáticos
contrapostos à laicidade do Estado, e conseqüentemente da escola, a
justificativa de Percival reverbera. É fundamental confrontar a névoa da
ignorância que sempre envolve o novo e a mudança.
No início dos anos 2000, ao ouvir
um relato sobre as dificuldades encontradas pelo Programa Médico da Família
para alcançar as famílias negras em regiões sabidamente negras, era muito fácil
detectar onde estava o problema. Difícil era mobilizar os agentes de
comunicação do programa para adotar estratégias múltiplas e não-ortodoxas que
pudessem englobar os sujeitos sociais desejados.
Qual era a estratégia padrão das
pessoas responsáveis pela divulgação do serviço? Elas iam até a casa e o
apresentavam aos moradores. Convocavam-nos para as reuniões do programa no
posto de saúde e, a partir daí, esperavam que eles se envolvessem plenamente na
ação. Entretanto, os resultados não atingiam a diversidade racial da região e
as pessoas negras continuavam ausentes. O que acontecia? Ora, não é preciso
bola de cristal para saber que os negros brasileiros, dentre os pobres, são os
miseráveis, informação sobejamente atestada pelas estatísticas oficiais. Para
quem vive na miséria, saúde, educação, lazer, são luxos, às vezes
inimagináveis. Impera a preocupação com a sobrevivência física. Certo, mas a
constatação não resolve o problema. O que fazer?
Primeiro, seria necessário
descobrir se os agentes de saúde mobilizavam as famílias negras e elas não
compareciam às reuniões ou se os agentes não estavam chegando até elas e, se
isso acontecia, por que não. Lembro-me que a pessoa que descrevia a situação
sequer havia pensado na possibilidade de as famílias negras não saberem da
iniciativa. E por que pensei nisso de cara? Porque se uma pessoa vive em
condições miseráveis, provavelmente mora em lugares de difícil acesso, ou seja,
nas pirambeiras e na beirada dos córregos que transbordam. Moram léguas depois
das crateras abertas nas ruas das periferias por obras de encanamento mal
feitas, próximo aos locais de desova de corpos e mocós onde os traficantes e
outros bandidos se escondem nos períodos de guerra (entre eles mesmos e/ou com
a polícia), dos quais ninguém quer chegar perto, nem os agentes de saúde,
obviamente. Eles querem proteger a própria integridade física e quem os
condenará por isso? Ocorre que é necessário encontrar essas pessoas, essas
famílias negras. O que fazer?
Se não é possível chegar até a
casa delas, que elas sejam encontradas nos lugares sociais que freqüentam, a
feira, por exemplo. Mas não adianta ir no horário nobre, quem está em condição
de miserabilidade não compra, não consome, cata o que comer entre as sobras. Se
houver um lixão na região, é preciso ir até lá e as famílias negras serão
encontradas. Afora isso, há os dias de entrega de cestas básicas; os cadastros
e formas de contato utilizados pelos programas sociais do governo federal; os
bares, sim, os bares, as biroscas onde a miséria da alma humana afoga as dores
e engana a fome; as escolas – crianças são ótimas mobilizadoras de adultos. Há
também as igrejas que fazem propaganda
enganosa, anunciando milagres no atacado, lá as famílias negras abundam. Sem
esquecer das igrejas sérias, dos terreiros de candomblé e umbanda, das partidas
nos campos de futebol de várzea (mesmo com muita fome a meninada bate bola), dos
grupos de rap, pagode e funk da região, dos grupos de capoeira, das
manifestações de cultura popular sobreviventes nas periferias, como as raras
congadas.
Há que promover caminhos diretos e indiretos para contemplar os sujeitos
das ações afirmativas. Há que flexibilizar os métodos ortodoxos definidos pelos
planos de metas, pelas tabelas de produtividade e custo-benefício, pelos
choques de gestão. Há que humanizar os processos e conectar um fio-terra às
condições reais de existência das famílias negras para responder às suas
necessidades.
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