O texto afirmativo e inovador de Lado a lado
Por Cidinha da Silva
A matéria do semanário elogiava a
fotografia de Lado a lado, a atuação de vários atores, das atrizes,
principalmente, detalhava uma série de aspectos técnicos favoráveis e afirmava
tratar-se de um bom texto. Destacava no
enredo as informações históricas sobre a formação dos morros cariocas no início
do século XX e também mencionava algo sobre o carnaval. Tecia comentários
superficiais sobre a Revolta da Chibata, abordada na trama.
Entretanto, não houve uma menção
sequer à tomada de posicionamento dos autores (Cláudia Lage e João Ximenes
Braga) em relação ao debate racial e a humanidade da pessoa negra. O texto é
bom, os diálogos são ótimos, justamente por esse motivo, pelo menos aos olhos
do seleto público, seguidor da novela.
Quando afirmamos que o texto é
bom, é impossível não destacar a tensão racial presente todo o tempo, bem como a
afirmação de valores humanos, éticos e proativos das personagens negras. Zé
Maria (Lázaro Ramos), por exemplo, diz a Constância (Patrícia Pillar): “Elias
(Afonso Nascimento Neto) tem por Albertinho (Rafael Cardoso) mais desprezo do
que eu tenho pela senhora. Seu filho foi a primeira pessoa que tratou Elias como
lixo, só porque ele é do morro.”
Constância contemporiza: “ele não sabia quem era o Elias.” Zé: “para
quem foi senhor de escravos deve ser difícil entender isso.” Constância, entre
cândida e cínica: “nas fazendas do meu pai e do meu marido, os escravos quase
não eram castigados, só quando necessário, e eu sempre vertia lágrimas.” Zé
Maria, taxativo: “enquanto eles (os escravizados) vertiam sangue.”
O texto é bom, é excelente, mas é
mais do que isto. É um texto afinado com um lado da História, um lado vencido
pela historiografia conservadora e elitista, o lado negro (dos negros, não,
sobre os negros).
Em outro momento, Chico (César Mello)
em conversa informal com Albertinho, depois do episódio do pó-de-arroz no corpo
para passar-se por branco urante jogo de futebol no time dos janotas, este,
para afirmar sua benevolência, lembra àquele que emprestou a própria camisa
para que o negro limpasse o rosto e continuasse em campo de cara limpa. Chico
responde: “você é racista, é ignorante, não é diferente daquele Fernando, nem
daquele Humberto (jogadores do time que haviam sido muito hostis com Chico). O
erro maior foi meu, eu nunca deveria ter aceitado passar pó-de-arroz no rosto.”
Ora, este é um diálogo que afirma um lugar político digno para os negros. Não é
possível dizer que o texto é bom, sem destacar uma discussão como esta, mas a
mídia conservadora consegue fazê-lo.
Outro momento emblemático se dá
em conversa frugal entre um casal que vive junto por conveniência, como tantos
outros, Margarida (Bia Seidl) e Bonifácio (Cássio Gabus Mendes). Ele lê artigo
do jornalista fantasma Antonio Ferreira, sobre o jogo de futebol no qual Chico
se destacou. O político corrupto ironiza uma afirmação da reportagem “um dia o
maior jogador do mundo poderá ser negro.” Nossos olhos contemporâneos sabem que
se trata de uma referência premonitória a Pelé e sabem também que ela não foi
posta ali pelos autores, gratuitamente. Bonifácio gargalha diante da frase e
Margarida comenta indignada: “é divertido desrespeitar negros e mulheres,
mulheres negras então” (notem, é uma mulher branca, de elite, quem tem essa
percepção; é algo muito inovador). Margarida acrescenta argumento sobre a mãe
de Fernando (uma negra), “houve outra mulher a quem você desrespeitou mais do
que ela? Só a mim.” Estamos acostumadas à invisibilização do debate racial, mas
até as inúmeras questões de gênero propostas e bem postas pela novela, a mídia
conservadora consegue ignorar, seja em momentos de tensão, seja nas reflexões da
estabanada Celinha (Isabela Garcia), que vai pouco a pouco percebendo a própria
falta de coragem para romper padrões que a infelicitam e, principalmente, compreende
a falta de amor próprio, determinante em sua solidão.
Por fim, Isabel (Camila Pitanga)
pergunta a Edgar (Thiago Fragoso), amigo e advogado: “como é que eu vou
explicar pro meu menino que ele foi roubado pela própria avó pelo racismo
dela?” Alguém sabe responder?
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