Leia "A dúvida", mais uma crônica de "Oh, margem! Reinventa os rios!", livro novo de Cidinha da Silva
Cada detalhe da sala de recepção repleta de cartazes é observada por Paula. Mensagens de cuidado com o amor-próprio, alertas sobre a violência contra mulheres e crianças, locais de denúncia e busca de apoio. Há também cartazes de seminários, imagens de mulheres felizes e sorridentes em situações de interação com outras.
Ela espera a vez de ser atendida e folheia as publicações dispersas pela mesinha. São pequenas e de rápida leitura: uma fala sobre prevenção do câncer de mama, outra do câncer de útero, outra sobre DSTS e AIDS. Esta mobiliza seu interesse. Ela lê com mais atenção. Vê que há vários exemplares. Antes mesmo de perguntar, a recepcionista responde que ela pode levar, se quiser. Ela agradece e coloca dois exemplares daquele sobre AIDS na bolsa. Continua folheando. Chegam duas outras mulheres. A funcionária explica que serão atendidas primeiro porque têm hora marcada. Paula veio sem aviso, será encaixada logo depois.
Ela sente um certo alívio,pois ainda não sabe como abordar o problema. Até hoje, só conversou sobre suas atividades profissionais no próprio ambiente de trabalho, com amigas e clientes. Nem considera o trabalho como profissão;afinal, não escolheu,foi jogada nele. Distraída, Paula nem percebe que chegou sua vez.
Ela entra na sala pintada de amarelo lindo. Fica encantada com as almofadas coloridas e a casinha com fogo onde borbulha uma água cheirosa,coisa que ela nunca vira antes. A psicóloga a recebe na porta, sorri afável, convida-a sentar-se. Ocupa outra cadeira, não há mesa separando as duas, como noutros consultórios. Começam a conversar. “Então, Paula, como vai? Em que podemos ajudá-la? Daqui a pouco eu vou pedir para você preencher um formulário de cadastro,tudo bem?” “Não,senhora. Quer dizer, eu sei ler um pouco, mas não sei escrever.” “Foi bom você ter avisado. Não tem problema,eu te ajudo. Mas o que te traz aqui?”
“Bem,doutora...” “ Por favor, não me chame de doutora, meu nome é Jucinete, já lhe disse.Pode me chamar de Ju, se quiser”.” Bem, doutora Jucinete,quer dizer Jucinete, eu sou puta, sabe!?Foi uma colega que me disse que vocês atendiam mulheres aqui, então eu fiz o último programa, tomei banho e vim.” “Sim, fique à vontade, continue.Depois te explico como trabalhamos.””Eu sei mais ou menos. Minha colega disse que vocês fazem exames, dão orientação,camisinha. Eu vim mesmo para tirar uma dúvida.” “ Estou aqui para ajudá-la,Paula, pode falar.” “É o seguinte, eu sou puta, já falei para a senhora...””Sim, você já disse e sabe que conosco não existe problema por isso, certo?” “Sei sim, senhora.” “Então, fale!” “É que, na rua onde eu trabalho, nós somos seis mulheres. Cada uma faz dez programas por noite, é a exigência do cafetão. Às vezes faz onze, doze, quando o movimento tá bom, em dia de pagamento, pra tirar um extra também, sabe? Do mesmo jeito eu motorista de táxi alugado”, sorri. “ O problema é que as brancas fazem dez programas por noite e, às pretas, o cafetão obriga a fazer quinze. E, quando a gente reclama, eu e a outra colega preta, ele ameaça bater e diz que é assim porque preta agüenta mais.”.
“Eu não agüento, não senhora. Nem a minha colega, mas ela tem vergonha de vir aqui perguntar. Eu vim saber para nós duas, se eu e ela estamos doentes, porque preguiçosa a gente não é. Mulher preta precisa agüentar mais, mesmo?”
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