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Entrevista de Cidinha da Silva ao coletivo "Nós, mulheres da periferia"

 

Cidinha da Silva: ‘A literatura expande nosso diálogo com o mundo’

Neste perfil, a escritora, editora e dramaturga conta sua trajetória pela literatura, a infância em Minas Gerais e os caminhos que vem traçando em sua escrita diaspórica.

POR JÉSSICA MOREIRA | 28/08/2020

Ponto. Cadência. Palavras que miram encruzilhadas e travessias. A literatura de Cidinha da Silva, 53, não é somente um encontro com a vastidão do mundo, mas um mapa aberto da geografia escondida das esquinas, largos, ônibus e avenidas das cidades.

De traços afro-diaspóricos, marcados por orixalidades e ancestralidades, seu jeito de contar histórias pode ser conferido nos 17 livros já publicados pela mineira nesses mais de 14 anos de andança pela escrita.

Cidinha também é dramaturga, editora e fundadora da Kuanza Produções. Suas publicações já ganharam vida em inglês, espanhol, catalão, francês e italiano. Seu primeiro livro de contos, “Um Exu em Nova York” (Dallas, 2018), foi vencedor do Prêmio Clarice Lispector de 2019, oferecido pela Biblioteca Nacional, um dos principais reconhecimentos da literatura brasileira.

Escreveu peças encenadas por companhias como Capulanas Cia de Arte Negra e Os Crespos, dramaturgias que podem ser encontradas no livro O teatro negro de Cidinha da Silva. Já teve textos estampados em importantes vestibulares nacionais, feito o da Unicamp (Universidade de Campinas) e USP (Universidade de São Paulo). 

Além disso, é historiadora, doutoranda com pesquisa em políticas públicas para o livro e literatura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), foi presidenta do Geledés – Instituto da Mulher Negra entre 2000 e 2002,  e também uma das autoras do livro Vozes Insurgentes de Mulheres Negras (Mazza Edições/Fundação Rosa Luxemburgo, 2019).

Uma infância cercada de imaginários

Nascida sob um sol de 20 de maio de 1967 em Minas Gerais, a escritora cresceu os primeiros seis anos de vida em um dos bairros mais negros da zona Leste de Belo Horizonte: Santa Efigênia. 

Foi num quintal coberto por mangueiras e laranjeiras que a Cidinha criança inventou seus primeiros imaginários, transformando as frutas que caíam do pé em animais com patas de fósforos ou de picolé.

Ainda na infância, migrou com os pais e irmãos para Contagem, município da região metropolitana da capital mineira, quando a família realizou o sonho da casa própria. “Foi uma mudança muito grande, porque era um lugar muito distante do centro da cidade”.

Pouco habitado, a família foi segunda a chegar na rua, que ainda era de terra, sem serviço de esgoto ou de luz elétrica. “O restante era mato”, recorda.

Mesmo com o lado externo ainda em construção, o interior da família Silva era grande, com um quintal ainda mais cercado de árvores, hortaliças e ervas próprias do solo mineiro: ora-pro-nóbis, serralha, taioba e inhame. 

“Era uma infância vivendo ali mesmo, no bairro com os meus irmãos”, diz Cidinha, a mais velha de seis e que ficava com os irmãos enquanto o pai, Antônio da Silva, erguia casas como pedreiro, e a mãe, Maria Pedrelina dos Santos Silva, lavava roupas de outras famílias. 

Mas foi nessa mesma cidade cheia de negritudes que ela e os irmãos também construíram suas primeiras ferramentas de combate ao racismo, mesmo não sendo um tema de debate no seio familiar.

“Desde que me entendo por gente, eu me sei negra. A vida sempre me disse ‘você é negra e esse sistema racista produz lugares de subalternidade para pessoas como você’. E, desde muito cedo, eu me insurgi contra isso. Agora, num momento mais maduro da vida, considero que tive uma vantagem imensa na minha formação e nas ferramentas que desenvolvi para enfrentar isso”.

Hoje, Belo Horizonte já é uma outra, principalmente para a gente negra. “Tem gerações novas de artistas negros que tem ocupado a cidade de uma maneira que não acontecia na época em que eu vivi lá. E isso tem tornado a cidade muito mais palatável, inclusive para as pessoas negras”.

‘Ler era tão divertido quanto correr’

“A palavra atravessou a minha vida quando eu aprendi a ler”, diz Cidinha, que foi apresentada aos livros quando ainda era criança. O alumbramento em decifrar as letras era tão grande, que a atividade virou uma brincadeira tão presente quanto correr nos arredores de casa. “Ler também era algo muito divertido”.

Lia tudo que tinha às mãos, de histórias em quadrinhos aos volumes que encontrava na sala de leitura da escola ou bibliotecas da região. “Tive a sorte de estudar em escolas públicas com salas de leitura, ou mesmo biblioteca, e eu era frequentadora assídua desses espaços”.

O atravessamento, no entanto, tomou ainda novos ares quando a pequena leitora se deparou com a série “Para Gostar de Ler” e conheceu a mineiridade subscrita nos dizeres de Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos.

“Essa série me apresentou os cronistas mineiros. Fui atrás da obra dessas pessoas na adolescência e ao longo da vida. Foi o encontro com esses cronistas que me despertou a vontade de escrever as minhas próprias histórias”.

“Mais que o exercício de uma função, a literatura nos oferece isso como dádiva, como possibilidade de expansão da alma, da percepção, e aí, a gente vai se nutrindo, crescendo, ampliando possibilidades de leitura e de interpretação do mundo”

Mesmo com a literatura permeando toda a sua trajetória, Cidinha não gosta de definir papéis para a matéria prima de seu ofício. “Eu não atribuo funções para o que eu estou escrevendo, mas acredito que a literatura, como a arte de um modo geral, nos proporciona uma expansão dos jeitos de ver, perceber e dialogar com o mundo”, diz. “Mais que o exercício de uma função, a literatura nos oferece isso como dádiva, como possibilidade de expansão da alma, da percepção, e aí, a gente vai se nutrindo, crescendo, ampliando possibilidades de leitura e de interpretação do mundo”.

‘Para as editoras independentes, esse imposto seria o fim, a conta nunca iria fechar’

Para quem, feito ela, vive, cria e se forma a cada dia por meio da literatura, a possível mudança dos impostos sobre o livro, proposto pelo ministro da Economia Paulo Guedes, é mais uma afronta do atual governo. 

Uma Lei de 2004 isenta a indústria do livro do PIS/Cofins. Se aprovada a mudança, a isenção poderia ser extinta com a substituição desses dois tributos pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com alíquota de 12%.

“Não bastasse o congelamento dos investimentos de educação e em saúde por 20 anos, querem também destruir uma política que, bem ou mal, existe para a produção do livro. Vão destruir a universidade pública, a educação básica. Esse é o interesse desse desgoverno e o imposto sobre o livro é mais um aspecto desse projeto”, crítica a escritora, que enxerga o perfil elitista da mudança tributária, que pode prejudicar editoras e escritoras independentes feito ela.

“Para as editoras independentes, esse imposto seria o fim, porque a conta nunca iria fechar. As editoras já pagam impostos. O livro  é uma coisa tributada no Brasil. O imposto proposto, na verdade, tem como objetivo robustecer o projeto de emburrecimento da população brasileira, esse projeto de vilipêndio à cultura e à educação”.

A escolha pela literatura

Embora hoje tenha uma vida completamente ligada ao fazer literário, esse caminho não foi tão simples quanto pode parecer. Ao terminar o ensino médio, ingressou na Faculdade de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Embora defensora da universidade pública, desse período traz apenas o gosto pela pesquisa e os aprendizados dos métodos científicos.

“Eu sempre fui muito curiosa com as coisas do mundo. Ter acesso a algumas metodologias de pesquisa ajudou na minha formação, mas não tenho nenhum encanto pela universidade”, diz. 

Foi em busca do novo que, aos 23, Cidinha deixou a capital mineira e se lançou no cinza das ruas paulistanas. Foi aqui que ela encontrou porto para trocar e aperfeiçoar as reflexões sobre mulheres negras e racismo que já realizava, ingressando na Geledés – Instituto da Mulher Negra, onde presidiu a organização por dois anos.

O ano era o de 2004. Diferentes setores de sua vida passavam por transformações, cobrando dela decisões importantes, que mudariam o rumo de sua trajetória, principalmente na vida literária. “Foi um ano bastante difícil, de amadurecimento de decisões, entre elas a saída do Geledés, que foi um lugar onde passei minha juventude inteira. Uma decisão forte que mexeu comigo e outras coisas”.

Ao deixar o instituto, Cidinha se voltou à leitura em um nível que já não conseguia desde a adolescência, despertando nela, outra vez, a vontade de escrever a próprio punho. “Eu escrevia para um boletim eletrônico alguns arremedos de crônica que eram muito lidos. As pessoas gostavam e começaram a me perguntar quando é que teríamos um livro”. 

A pergunta lhe encorajou a reunir os escritos que mais gostava e se lembrou de apresentar a obra ainda crua para um escritor que havia conhecido há pouco tempo, mas que a tocou pela simpatia.

O autor a quem se refere é Marcelino Freire, educador e criador da Balada Literária, que, anualmente, homenageia escritoras e escritores brasileiros e joga luz a talentos literários dos mais diversos estilos, origens e classes sociais.

Após ler seu manuscrito, o escritor disse que, ali, naquele enredado de textos, havia uma obra. “Você tem um livro aqui”, lembra Cidinha ainda hoje daquela conversa ocorrida em um café paulistano, que serviu de incentivo para Cidinha publicar, com seus próprios recursos, o primeiro trabalho: Cada Tridente em Seu Lugar, de 2005.

A autora entende que, até então, sua escrita ainda estava bastante ligada às reflexões que realizava enquanto ativista na área de Direitos Humanos, mas apresentada de um jeito mais leve e prazeroso. Foi apenas em seu terceiro livro — a novela infantojuvenil Os nove pentes d’África (2009, Mazza Edições) — que Cidinha realmente se viu na profissão que começava a trilhar.

“Ali, eu consegui me ver como escritora mesmo, porque o livro me desafiou no sentido de construir uma linguagem mais apurada, de não fazer dos textos apenas veículos para discutir algum tema político que eu quisesse discutir, principalmente o tema do racismo, que era o que eu vinha falando até aquele momento.”

A masmorra do lugar de fala

“Um tigre não apresenta sua tigritude, ele ataca”, sublinhou Cidinha na Revista do Instituto Goethe em português, espanhol e alemão, para que todos entendam sua crítica aos lugares que tentam enquadrar as mulheres negras que escrevem. 

Nesse sentido, busca não se enquadrar aos lugares de fala que o sistema literário e racista tentam definí-la e é assertiva: “a gente se enclausura na masmorra do ‘lugar de fala’, enquanto a política de geração, garantia e propagação de privilégios da branquitude segue ditada das torres do castelo.”

Cidinha percebe que muitas muitas escritoras e escritores negros são convidados a falar de seus livros, mas acabam fazendo um discurso geral sobre combate ao racismo, mas não conseguem sequer falar de sua produção literária.

“A gente se enclausura na masmorra do ‘lugar de fala’, enquanto a política de geração, garantia e propagação de privilégios da branquitude segue ditada das torres do castelo.”

“É uma opção legítima dessas pessoas, mas não é a minha. É contra esse lugar que eu me insurjo. Eu sou uma escritora com 17 livros, tem coisa suficiente pra falar desses livros”.

Os vários Brasis, Africanidades e Orixaridades

Uma hora não foi suficiente para falar sobre a vasta obra de Cidinha, mas o bastante para entender sua importância no cenário literário brasileiro. Quem lê ‘Um Exu em Nova York’ é convidado a atravessar semáforos e subir escadarias de histórias e memórias que despertam afetos, empatia e reflexões múltiplas sobre viver nas grandes metrópoles, seja em São Paulo ou Nova York.

Baseada hoje na capital paulista, Cidinha já teve outras tantas moradas, que de algum modo a instigou novas paisagens: sonoras, imagéticas, literárias. Além de Minas Gerais, viveu em Salvador (BA), Brasília (DF) e Rio de Janeiro (RJ). Sobre a capital nacional ela prefere não gastar muita palavra, enquanto se alonga na lembrança do samba correndo pela quadra da Mangueira, sua escola do coração no Rio de Janeiro.

“O samba é uma coisa que eu sempre gostei, sempre foi muito presente na minha vida, mas no Rio tinha uma vivência, eu morava do lado do sambódromo”.

Mas foi na cidade mais preta do Brasil, Salvador (BA), que a africanidade diaspórica de Cidinha encontrou as africanidades que habitam as esquinas e curvas das ruas baianas. 

“No mês de agosto, como estamos, o povo de Obaluaê toma as ruas, se banha de pipoca. Aqueles com Peji de Obaluaê saem na rua pegando e recebendo dinheiro das pessoas que passam para juntar, para fazer Olubajé, a grande festa de Obaluaê”.

O que mais lhe impressionava era a forma como os terreiros tomavam de maneira incisiva as ruas, afetando seu olhar sobre o espaço urbano. “Isso me fez amadurecer uma coisa que é muito forte na minha escrita, que é o tema do direito à cidade e notar como as várias expressões de negritude dialogam com o espaço urbano, também de maneira tensa, buscando demarcar espaços em territórios que sempre nos alijam com os processos de gentrificação. Então, a ocupação das vias públicas pelas forças da negritude, das africanidades, me afetou muito”.

A escrita em tempos de pandemia

Sempre presente em seus textos, a cidade continua permeando sua produção, mesmo diante do isolamento social. Diferente de outros escritores, Cidinha conta que não tem tempo de ir para um lugar específico, uma praça ou o transporte público, para tomar nota para os próprios escritos.

“A partir do lugar social que eu ocupo, enquanto mulher negra, eu não tenho tempo para ficar sentada numa praça, olhando o mundo passar para pegar material para as minhas crônicas, pois estou trabalhando o tempo todo. Se eu tiver tempo, eu vou para um parque caminhar, que é uma coisa que eu gosto. Nessa caminhada pode ser que eu recolha coisas pras minhas crônicas. A gente que é cronista apura muito a percepção para o que está em nossa volta. Você encontra várias situações que podem se transformar ou alimentar uma crônica”.

Em tempos de pré-pandemia, Cidinha apenas conseguia se dedicar ao seu próprio projeto literário nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro, já que no restante do ano passava ao menos 85% do tempo trabalhando na escrita encomendada, divulgação e venda de seus livros, oficinas, cursos, participações em feiras,  para assim conseguir auto-financiar as horas de processo criativo de sua obra.

“No restante do ano eu tenho horinhas auto financiadas pelo meu trabalho, pelas outras coisas que eu faço, que são entorno da literatura. Mas para escrever, há uma condição para mim: eu preciso ter a cabeça leve, a cabeça limpa. Às vezes, eu até tenho esse tempo, mas a cabeça não está leve, não tá limpa, então, não rola escrever. Mas isso não é uma receita de bolo, é o meu processo, que exige muita organização,  

Questionada sobre como o momento de crise afeta seu ofício, Cidinha é enfática: “acho que a dificuldade maior agora é pra viver. Não está fácil”. Para ela, existir nesse momento é também existir em medo, no de adoecer ou de que as pessoas ao redor adoeçam. 

“Se você não perdeu ninguém, você tem uma pessoa próxima que perdeu alguém para a Covid-19, para a falta de política pública, a falta de contenção da doença, de política pública adequada de tratamento das pessoas. A grande dificuldade desse momento é viver. Está difícil manter a sanidade mental e a esperança”. 

Diante disso, para ela, a expressão “reinvenção em tempos de pandemia” ficou esvaziada. “Acho que virou um clichê. Eu faço o que sempre fiz na vida, que é me adaptar a situações novas para produzir o que eu preciso”, faz questão de salientar, lembrando que os artistas sempre trabalharam a partir da reinvenção. 

“A gente negra do Brasil, na qual eu me incluo, é especialista em adversidade, e a gente produz, diuturnamente, incessantemente, tecnologias de produção de infinitos que garantem a nossa sobrevivência psíquica, emocional, espiritual e, como toda gente negra, é isso que eu tenho feito”.

No mais, deixamos aqui um trecho da crônica ‘Becos, Vielas, Afoxé e Congado‘ publicado por Cidinha no Suplemento Pernambuco, onde ela diz a saída para o momento difícil que atravessamos:

“A grande lição da pandemia de covid-19 vem dos becos e vielas, as ruas típicas das favelas. Estamos por nossa própria conta, nós por nós é mantra e é atitude de combate. Nós, gente negra, só nos salvaremos da morte se cuidarmos de nós mesmos e uns dos outros, se nos responsabilizarmos pelos nossos que mais precisam. É isso que grupos de jovens, lideranças comunitárias, grupos artísticos e organizações como a Cufa (Central Única das Favelas), têm feito diante da ausência do Estado e de políticas públicas, cuidam de nossa gente, zelam por nossa saúde e pela preservação da vida. Asé para quem luta e enfrenta a morte, de pé.

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