O bom e o feio - funk proibidão, sociabilidade e produção do comum

(Por Ecio P. de Salles / UFRJ). O batuque da favela/ terminou em tiroteio/ todo samba do barulho/ eu acho bom, mas acho feio. “É feio, mas é bom”, Assis Valente (1939) Introdução: "O proibidão é uma vertente do funk que explora de forma demasiadamente explícita os temas da violência e do crime – inclusive com narrativas sobre os conflitos entre traficantes nas favelas, elogios a facções ou traficantes, exaltação do poder bélico de determinadas comunidades etc. – ou da sexualidade/erotismo, muitas vezes narrando, sem nenhum pudor, situações eróticas vividas ou desejadas pelos intérpretes. Parto da impressão, muito inicial ainda, de que esses funks representam a narrativa de uma realidade particular que, em certo sentido, é perturbadora de uma determinada ética, ou de uma determinada cultura, a que poderíamos denominar hegemônica em mais de um nível. Mas também é uma afronta ao bom-gosto, ou ao bom-senso, não apenas da classe média e das elites, mas de representativos setores do próprio popular. Muitas das narrativas a respeito da origem do funk remetem à obra musical de James Brown – ainda na década de 60, nos Estados Unidos – os passos fundamentais do gênero que tomaria boa parte do planeta desde então. Como, neste momento, não pretendo me alongar em discussões históricas, devo informar apenas que, já no final da década de 80, uma nova forma de funk surgiria nas favelas cariocas. Funk carioca, diga-se de passagem. Pancadão, diga-se de outra forma. Neurótico, melody, new funk, comédia, proibidão ou erótico, como é conhecido em suas variações. Mas não precisa complicar: é simplesmente como funk que todos o reconhecem e assim denominam tanto as festas onde ele é tocado – bailes funk – quanto os seus ouvintes/dançarinos/seguidores/ideólogos – funkeiros (Essinger, 2005: 11). Portanto, o primeiro ponto é não confundir o proibidão com as demais vertentes do funk, as quais se assemelham na forma, mas diferem bastante no que diz respeito ao conteúdo. O primeiro proibidão, pelo menos o primeiro a tornar-se conhecido fora dos círculos mais específicos do funk, segundo informa Sílvio Essinger, foi o “Rap do Comando Vermelho”, cuja referência melódica foi a de um sucesso de Ivete Sangalo, “Carro velho”: “Cheiro de pneu queimado/ carburador furado/ e o X-9 foi torrado/ quero contenção do lado/ tem tira no miolo/ e o meu fuzil está destravado”. Entretanto, um dos precursores do gênero foi o "Rap das armas", que chegou a tocar em algumas rádios FM do Rio de Janeiro com significativo sucesso em diversas regiões da cidade e com penetração em diferentes classes sociais. A fim de ilustrar o teor dessas composições, transcrevo um trecho desse funk. Sem dúvida, trata-se de uma canção exemplar daquilo que, mais tarde, se convencionaria chamar proibidão. Cidade de Deus é ruim de invadir/ Nós com os alemão vamos se divertir/ Porque na de Deus, vô te dizer como é que é/ Lá não tem mole nem pra DRE/ Pra entrar lá na de Deus até a BOPE treme/ Não tem mole pro exército, civil nem pra PM/ Eu dou o maior conceito para os amigos meus/ Agora vou mostrar como é Cidade de Deus/ Tem um de AR-15, outro de 12 na mão/ Tem mais um de pistola e outro com dois oitão (Cidinho e Doca: “Rap das armas”). A letra é suficientemente explícita. O rap, gravado por Cidinho e Doca em 1999, narra o cotidiano nas favelas (no caso, a Cidade de Deus, na Zona Oeste da cidade) sob um certo ponto de vista: a relação hostil com a polícia e com as diferentes facções do narcotráfico, esta contida principalmente nas referências à expressão “alemão”; e o poder bélico da facção criminosa hegemônica na comunidade. AR-15, M-16, Ponto 50, AK-47 são armas de grosso calibre, algumas delas utilizadas pelas forças armadas em artilharia antiaérea, cantadas por Cidinho e Doca com indisfarçável orgulho. Com efeito, uma das características do funk proibidão estará justamente no fato de, não raro, expressar a competição entre as favelas – na verdade, entre os diferentes “comandos” do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. O bom e o feio: Ao penetrar no universo do funk proibidão, a primeira questão que me veio à mente foi: trata-se de uma forma de expressão oriunda de um “lugar de fala” problemático. Porque, aparentemente, é expresso por aqueles que não têm (ou não deveriam ter, segundo uma lógica a que designo como a “confluência de lugares de fala conservadores”) a possibilidade de expressão. De certa forma, o funk proibidão representa a redenção de um “lugar de fala” que deveria permanecer no silêncio. O filósofo Jacques Rancière, relendo Platão e Aristóteles, vê na estética uma partilha do sensível, a qual faz ver “quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce” (Rancière, 2005: 16), dessa forma fazendo visível a existência de um “comum”, e da possibilidade de uma fala comum. E essa partilha determina quem participa na constituição do político (ou social). Muniz Sodré, a partir da mesma referência, entende que o sujeito investido da fala comum “é socialmente visível e assim pode tomar parte no jogo político” (Sodré, 2006: 129). Contemporaneamente, a partilha do sensível estabelece tensões em um mundo em que algumas falas, alguns lugares de fala, têm maior peso que outros. O que não impede que aquelas que, num dado momento, estão em desvantagem articulem formas de resistir. Formas que se desdobram em uma multiplicidade enorme de lugares de fala que nem sempre, apesar de comungarem do fato de resistir, estarão em sintonia. Se pensarmos, provisoriamente, numa estrutura binária de disputa (de poder, que seja) – do tipo elite x popular – será forçoso pensar que, dentro do campo denominado popular, haverá outras tensões. Entre o hip-hop, o samba, o funk e inúmeras outras formas de manifestação, encontraremos diversos lugares de fala, os quais nem sempre falarão a mesma língua. Retomando o raciocínio: a partilha do sensível coloca o problema sobre quem participa do comum. É uma questão política, ela “define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dotado de uma palavra comum etc.”. Por isso o tema aqui proposto, o funk, em especial aquele denominado proibidão, representa um lugar de fala excepcional para a reflexão sobre as relações de poder que se estabelecem sobre uma manifestação cultural específica, mas num contexto social e político em que a violência urbana e o “declínio de valores morais” desempenham um papel destacado. A questão é a de que a favela em geral, o funk em particular, são responsabilizados por essa violência e por esse declínio. Em parte, o funk proibidão me parece uma resposta radical a esse processo de estigmatização. Qual será, entretanto, o alcance dessa resposta? O sociólogo francês Loïc Wacquant acredita que a posição desprivilegiada das favelas e seus congêneres na sociedade brasileira se deva ao poder de segregação das elites econômicas e intelectuais – “todas brancas” – que legitimam as distâncias sociais e a preservação de seus privilégios, em oposição ao povo – “todos negros ou quase negros” –, num processo concretizado em instituições que “prescindem do isolamento territorial dos pobres”. E é por esse motivo que a organização das grandes cidades baseia-se num modelo “que combina proximidade física e distância e separação sociais, pois cada um sabe exatamente o seu lugar no espaço social” (Wacquant apud Peregrino, 2003: 227). Estão dispostas aí duas questões fundamentais: a identificação de uma política que decide sobre quem está “incluído” e quem não está; e a percepção de quem essa decisão se baseia em critérios sociais e “raciais”. Se a partilha do sensível pressupõe a existência de um comum, uma afinidade global entre modos de ser, de fazer e de dizer, cabe reconhecer que aqueles que produzem ou executam o funk1 se situam num ponto distinto, de quase absoluta invisibilidade, imobilidade e impossibilidade de fala. Luiz Eduardo Soares informava que “Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser socialmente invisível”. Entre as razões para essa invisibilidade, Soares arrola a estereotipia, um olhar estigmatizante que prevê o outro como ameaçador, conduzindo à hostilidade. “Quer dizer, o preconceito arma o medo que dispara a violência, preventivamente” (Athayde [et al.], 2005: 175). Por isso mesmo, o jovem pobre e negro caminhando pelas ruas, na maioria das vezes, tem poucas chances de ir muito longe. Porque além de invisível, ele é também controlado na sua mobilidade. Por outro lado, Zygmunt Bauman afirma que “a marca dos excluídos na era da compressão espaço-temporal é a imobilidade” (Bauman, 1999: 121). Para o autor, uma conseqüência danosa da instauração de um mundo globalizado residiria no contraste entre poder de mobilidade para as elites e conseqüente retenção em se us lugares de origem para os pobres2. Como se vê, não é por acaso que a condição de “jovem, preto, pobre, favelado” – sim, é um clichê, mas praticamente inevitável no caso – é, de antemão criminalizada. Daí, sua fala é necessariamente interditada, no mínimo controlada. As primeiras palavras de Foucault em A ordem do discurso afirmam que “em toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos” (Foucault, 1996: 8). Daí, conclui-se que o discurso já é uma instância de poder, e que pode oferecer algum perigo a outras instâncias de poder. Contudo, não é tão simples distribuir os lados nessa disputa. A noção de poder em Foucault é complexa, ele “nunca está aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem”. Em contrapartida: O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão (Foucault, 1979: 183). Mesmo assim, não é difícil perceber que algumas instâncias culturais encontram-se em posição radicalmente desprivilegiadas em relação a outras, chegando mesmo a ter suas possibilidades de expressão dificultadas, quando não interditadas. É que, apesar de não ser facilmente localizável e/ou definível, o poder existe. E é, ainda conforme Foucault, sabido que “não se tem o direito de dizer tudo”, não em qualquer situação, e que “qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (Foucault, 1996: 9). Isso, finalmente, porque, o discurso, antes de traduzir as lutas ou os sistemas de dominação, é “aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (Foucault, 1996: 10). Pierre Clastres dizia algo parecido, em A sociedade contra o Estado. Afirmava que o exercício do poder é que garante a posse da palavra. Afinal, conclui Clastres: “Toda tomada de poder é uma aquisição de pala vra” (Clastres, 1990: 106). Pode-se dizê-lo de outra forma: a posse da palavra pode garantir o exercício do poder. Por outro lado, segundo Foucault, ainda que funcione em rede e não se possa estabelecer com exatidão o seu titular, o poder “sempre se exerce numa determinada direção, com uns de um lado e outros do outro”. Embora não se saiba ao certo quem o detém, sabe-se bem “quem não o possui” (Foucault, 1979: 75). O fato de a favela ter sido discriminada, estigmatizada e finalmente criminalizada teve como conseqüência um “desempoderamento” desse espaço. Em resposta, a favela engendrou suas próprias formas de poder. À margem da lei – mas também à margem dos privilégios da sociedade de consumo, à qual acedem senão por meios ilícitos e arriscados3 – um certo número, ainda que minoritário4, de habitantes das comunidades organizaram-se em torno do tráfico de drogas e outros crimes, estabelecendo-se como uma espécie de líderes em suas localidades, impondo uma nova ordem de dominação e controle, atravé s das armas e do medo. Essa parecia ser uma realidade distante do cotidiano das pessoas que não morassem nas favelas. Talvez por isso quando o funk saiu das fronteiras de seu universo particular – o qual engloba não apenas o espaço da favela, mas a rede social (e transversal) de pessoas as mais diversas que vivenciam, ou são próximas, do mundo funk –, tenha fomentado um acalorado debate, recheado de opiniões polêmicas, contra e a favor. Era como se aquele mundo cuidadosamente afastado – de certa forma, no espaço e no tempo – invadisse a realidade do presente, assustando e seduzindo a classe média, ou parte dela ao menos. Uma matéria da revista Bravo!, em 2005, de autoria de Cláudio Albuquerque, começa dizendo que o gênero tem-se afirmado cada vez mais, apesar das resistências. Declara que o funk é uma espécie de “super-herói invertido”. Assim, ele estaria por toda parte, onipresente. E teria ainda o dom da invisibilidade, “mas apenas porque as pessoas não querem vê-lo por perto e fazem de conta que não existe”. Para Albuquerque, em que pesem os preconceitos, quando o funk é tocado, as barreiras se rompem. “Porque o funk não é para ser explicado, é para ser sentido. E aí todos — a turma no restaurante, a madame no carrão — vão bater pezinho, quebrar a cintura e sacudir o popozão”. O autor cita uma composição de Amílcar e Chocolate, a qual parece ser hoje uma síntese bem elaborada do que representa o funk carioca: “é som de preto e favelado, mas quando toca ninguém fica parado”. Nesta mesma matéria, a revista abre espaço para depoimentos de artistas da MPB, entre os quais Fernanda Abreu – que em seus discos e apresentações ao vivo foi uma das pioneiras, entre as cantoras exteriores ao contexto funk, a incorporar o gênero. Na verdade, Fernanda Abreu foi desde o início adepta do gênero funk (aquele mais vinculado ao soul e a disco music norte-americanos da década de 70). Seu pioneirismo se deve a adotar também o chamado funk carioca. Enfim, dirá Fernanda: O funk carioca é a expressão da cultura dos morros cariocas, assim como o samba e o pagode. Um movimento autenticamente carioca e brasileiro. Deve ser pensado, criticado e discutido. Nunca censurado ou alijado do processo cultural. O funk carioca existe além da moda. Existe nas favelas, nos subúrbios, nos guetos. É uma espécie de ponte entre as ‘cidades partidas’: zonas ricas/ zonas pobres. Todavia, a imprensa em geral não via assim ao longo da década de 90 e princípio da seguinte. O funk – muito antes de aparecerem os proibidões – tornou-se alvo de discursos que, quase sempre, tratavam de criminalizá-lo. A associação entre baile funk e favela era vista como sinal de risco para a sociedade. Essa mesma associação, aliás, tornou-se possível, sobretudo, devido à proibição dos bailes funk, em 1992. Até ali, os bailes eram realizados em clubes ou boates da cidade. Porém, o episódio do “Arrastão do Arpoador”5 transformaria o funk e os funkeiros em bodes expiatórios do processo de agravamento da violência no Rio de Janeiro. Logo após o episódio, o Jornal do Brasil, em sua edição de domingo, estampava um artigo no qual enfatizava o contraste entre os jovens caras-pintadas (“motivo de orgulho”) que foram à rua pelo impeachment do então Presidente da República Fernando Collor, e os “caras-pintadas da periferia”. Intitulado “Movimento funk leva desesperança”, o artigo dizia que os funkeiros teriam levado à zona sul carioca uma das batalhas das guerras nas favelas, as quais “vêm encarando desde que nasceram – a guerra entre as comunidades. Eles, assim, tornaram-se motivo de vergonha, diretamente ligada ao terror na praia: os arrastões que semearam pânico” (apud Yúdice, 2005: 169. Grifos meus). Quase dois anos depois, no dia 5 de fevereiro de 1994, o principal editorial do mesmo Jornal do Brasil, intitulado "A ameaça das favelas", mostrava-se ainda mais objetivo: Das favelas, de onde se espraiam os acenos da marginalização, o perigo não pára de crescer. Tiroteios, guerras de quadrilha, bailes funks, lixo lançado para baixo, invasão das reservas florestais, desrespeito à propriedade particular, tudo se avizinha do delírio. O funk aparece nessas matérias ligado à idéia de terror, como no primeiro caso, ou à de perigo e risco, como no segundo. As medidas propostas para conter essa ameaça já se tornaram um lugar-comum quando se trata de controlar manifestações da cultura popular inconvenientes: “Os bailes funks são um caso de polícia e deveriam ser combatidos em nome da paz social” (editorial do Jornal do Brasil, 19 de julho de 1995). Não é difícil imaginar que as notícias e editoriais nos veículos da mídia, somados às seções de cartas dos jornais, construíam um ponto de vista a respeito do funk e de outros aspectos da cultura da favela que era, de maneira geral, um ponto de vista criminalizante. Por esse viés, toda a diversidade própria à produção de funk nas favelas cariocas foi reduzida a um clichê: o da violência extrema e associação ao crime. Mesmo os critérios do suposto “bom gosto” ficaram em segundo plano – embora não tenham sido nunca esquecidos – em face desses aspectos. A partir daí, entra em cena uma combinação de cartas para seções de leitores dos jornais (ou mensagens on-line, no caso de páginas na Internet), matérias, editoriais, notícias muitas vezes fantasiosas, quando não sensacionalistas, somadas à escassez de ofertas de emprego ou formas alternativas de obtenção de renda e estratégias de marketing que apostam tudo no consumo, entre outras formas de gestão opressiva das relações sociais. Esses procedimentos vão construindo formas de circunscrever o funk e seus adeptos. Trata-se de um processo – característico da confluência de lugares de fala conservadores – capaz de construir muros fortíssimos a separar os discursos, a produzir a estereotipia e a estigmatização dos setores populares, engend rando dessa forma os mecanismos que lhes vedam o acesso aos bens simbólicos e materiais oferecidos pela globalização. Entretanto, essa confluência conservadora não é impermeável, nem indestrutível. Em primeiro lugar, porque não se trata de dois lados definidos – a imprensa que condena é o mesmo espaço onde se constituem discursos alternativos ao da condenação, uma tensão que acredito ter ficado explícita no desenvolvimento dos últimos parágrafos. (E, por outro lado, os espaços populares têm que se haver com suas próprias tensões). Entretanto, com o advento do proibidão, chega mais lenha à fogueira desse debate. A maioria das letras de funk produzidas nesse contexto é deliberadamente explícita. É comum encontrar alusões a marcas de arma, como numa composição da Chatuba, onde há “dezoito AR-15 fazendo a contenção/ MK tá de AK, escoltando o camburão” e ainda “mano Bigão, contenção de parafal/ Nadinho de G3, 100% revoltado”. Também é recorrente a reverência a chefes reconhecidos do tráfico. Há vários funks em homenagem a Elias Maluco, Isaías, Marcinho VP e outros líderes do Comando Vermelho. O mesmo acontece com líderes de outras facções, como Uê ou Celsinho da Vila Vintém. Já em outro sentido, há composições que fazem o percurso contrário, atacando chefes de outras facções. Por exemplo, o funk da Providência que menciona Gangan, chefe do tráfico no Estácio morto em 2005, é bastante característico: “Gangan seu arrombado/ escute o que eu te falo/ a Prov6 não é brincadeira/ e preste atenção/ chegou foi no morrão/ um G37 que levantou poeira”. Apesar da crueza das composições do funk, certamente sem precedentes, há recorrências históricas na música popular brasileira de um certo elogio poético do banditismo e outros temas correlatos. Como que reafirmando as palavras de Eric Hobsbawn sobre os bandidos rurais – cosiderados por sua gente como heróis, “campeões, vingadores, paladinos da justiça” (Hobsbawn, 1975: 11) –, não são raras as composições que enaltecem bandidos e seus feitos na cultura brasileira. Desde uma composição de Jorge Benjor, "Charles Anjo 45": “Charles Anjo 45 protetor dos fracos e dos oprimidos/ Robin Hood dos morros/ rei da malandragem/ um homem de verdade/ com muita coragem”. Ou um clássico de Geraldo Pereira, “Escurinho”, que conta a história de um “escurinho” que era direitinho, mas ficou com “mania de brigão” e “já foi pro Morro da Formiga/ procurar intriga/ já foi pro Morro do Macaco/ já bateu num bamba/ já foi pro Morro do Cabrito/ provocar conflito/ já foi pro Morro do Pinto / acabar com o samba!”. Ou ainda, este de Wilson Moreira: “Lá vem o Chico Brito/ descendo o morro/ na mão do Peçanha/ é mais um processo/ é mais uma façanha/ (...) É vale nte no morro/ e dizem que fuma uma erva do norte”. Até canções de João Bosco e Aldir Blanc, como esta que cito, interessante por narrar os nomes de diversas favelas cariocas, um procedimento comum a algumas manifestações da cultura popular e que foi adotado largamente pelo funk e pelo rap. O menino cresceu entre a ronda e a cana/ Correndo nos becos que nem ratazana/ Entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha/ Subindo em pedreira que nem lagartixa/ Borel, Juramento, Urubu, Catacumba/ nas rodas de samba, no eró da macumba/ Matriz, Querosene, Salgueiro, Turano/ Mangueira, São Carlos, menino mandando/ ídolo de poeira, marafo e farelo/ um deus de bermuda e pé-de-chinelo/ imperador dos morros, reizinho nagô/ O corpo fechado por babalaôs (João Bosco e Aldir Blanc: "Tiro de misericórdia"). Nesse contexto, a figura do X-9, por exemplo, renderia uma outra pesquisa. Trata-se, certamente, do personagem mais detestado do repertório do funk e da música popular em geral. Nomeado como X-9, alcagüete (ou cagüete), delator, dedo-duro ou dedo de seta, ele é considerado (pelo menos nesse cancioneiro) o que tem de pior dentro da favela. Bezerra da Silva tem inúmeros sambas que tratam do assunto: “Eu só sei que a policia pintou no velório/ E o dedão do safado apontava pra mim/ cagüete é mesmo um tremendo canalha/ nem morto não dá sossego” (“Defunto cagüete”); ou a do clássico refrão “vou apertar mas não vou acender agora”: “É que você não está vendo/ que a boca tá assim de corujão/ tem dedo de seta adoidado/ todos eles afim de entregar os irmãos” (“Malandragem dá um tempo”). E pra completar, uma composição exemplar dessa ética, sob um outro ângulo. De autoria de Benjamim e Marina Batista, ess e samba chegou a ser gravado por Adriana Calcanhoto: “Vocês estão vendo aquele mulato calado/ com o violão do lado/ já matou um, já matou um/ A polícia procura o matador/ mas em Mangueira não existe delator” (“Mulato calado”). No universo do proibidão, mudaram as formas de se expressar mas o estigma do delator é o mesmo. O funk "10 mandamentos da favela"8, por exemplo, anuncia uma espécie de código ético para integrar o espaço da favela, especialmente no que diz respeito ao convívio com o crime: “vou falar agora, vê se não bate biela/ os dez mandamentos que têm dentro da favela/ o primeiro mandamento é não caguetar/ cagüete na favela não pode morar” (Cidinho e Doca: “10 mandamentos da favela”). Já este outro, dos mesmos autores, exp licita a metodologia punitiva do tráfico e como o proibidão é sensível a essa lógica: “Fogo no X9 / Da cabeça aos pés/ Pega o álcool e o isqueiro/ Fogo no X-9” (Cidinho e Doca: “Fogo no X-9”). Se a letra é suficientemente explícita, o tom de voz agressivo ou gestual irado perceptíveis nas performances dos funkeiros tornam ainda mais dramático o conteúdo das canções. “Retorno de Jedi”, conhecida composição de Mr. Catra, indica uma expressão usada pelo tráfico nas favelas, avisando que a vingança será terrível contra aqueles que desrespeitarem os códigos de conduta na comunidade: “Bulidor, tu vai e o retorno é de Jedi/ X-9, tu vai e o retorno é de Jedi/ bilha, tu vai e o retorno é de Jedi/ Conspirador, tu vai e o retorno é de Jedi”9. Como se vê, um código muito próximo daquele prescrito na composição “10 mandamentos”. Outra de Catra: “Cachorro/ Se quer ganhar um din-din/ Vende o X-9 pra mim/ O patrão tava preso, mas mandou avisar/ que a sua sentença nós vamos executar/ e com bala de HK” (Mr. Catra: “Cachorro”). De certa forma, o funk em geral é (até certo ponto) tolerado. Mesmo aquele que recorre a um certo erotismo menos explícito, recorrendo a frases de duplo sentido, são melhor digeridos. São os casos do Bonde do Tigrão (“Eu vou cortar você na mão/ Vou mostrar que eu sou tigrão/ Vou te dar muita pressão/ Então martela, martela/ Martela o martelão”), ou da Tati Quebra-Barraco (“Me chama de gatinha que eu faço miau/ me chama de cachorra que eu faço au-au”; ou “ah, eu vou comer o seu marido”). Todavia, quando músicas como “157 boladão” (autoria atribuída a Menor do Chapa), citada abaixo, começaram a aparecer, o teor da conversa tornou-se mais complexo. Não tira a mão do volante, não me olha e não se mexe/ é o bonde do Scoob de lá do morro do Macaco/ vai desce do carro, olha pro chão/ não se move, me dá seu importado que o seguro te devolve/ se liga na minha letra olha nós aí de novo é o bonde do mais alto/ só menor periculoso/ se liga na letra/ vou mandar mais um recado o/ bonde do São Carlos só quer carro importado/ Audi, Honda Civic, Citroën e Corola mas se tentar fugir - pá pum: tirão na bola. A fronteira estabelecida neste ponto é menos entre os setores populares (especialmente os moradores da favela) e a elite ou a classe média que entre diferentes concepções de mundo. Se há um campo popular, que de diferentes maneiras trabalha e que reúne aqueles que se sabe bem não detêm o poder, então o proibidão é um problema. O crime poderia ser pensado como uma forma de um determinado grupo (não custa reafirmar: um grupo sempre circunscrito e minoritário) pertencente à favela negar a condição subalterna, inferior, que lhe é imposta de fora, através do recurso a uma violência extrema na prática. O proibidão seria, nesse contexto, a celebração dessa violência no plano estético. Aliás, é possível que o sucesso do proibidão entre setores significativos da juventude de classe média tenha a ver com o fato de que, esteticamente, a novidade, o desconcertante e até o terror contido nessas composições seja muito atraente, a despeito de a realidade a que se refere ser indesejável. O problema é que, ao celebrar esse aspecto da vida na favela, o proibidão rompe não só com o discurso oficial (o discurso do bloco de poder), mas também com o discurso de outros grupos vinculados ao contexto da favela, que inventa e reivindica um papel igualmente insurgente para a favela, mas em outra clave: criativo, pacífico, inserido nos marcos da legalidade e comprometido com isto que Stuart Hall denominaria “força cultural popular-democrática” (Hall, 2003: 263). Ou que Hardt e Negri chamariam a produção biopolítica da multidão, na qual se assentaria hoje a possibilidade da democracia global (Hardt e Negri, 2005: 15). A verdadeira democracia, como o governo de todos para todos, é, portanto, a demanda desse discurso antitético, dessa força cultural. E a democracia é entendida aqui, nos termos de Hardt e Negri, não apenas como uma questão só de estruturas e relações formais, “mas também de conteúdos sociais, re metendo à maneira como nos relacionamos uns com os outros e como produzimos em conjunto” (Hardt e Negri, 2005: 134). Dessa maneira, a busca da democracia pelas forças populares-democráticas é o que em si procede a transformação social. Como afirmariam ainda uma vez Hardt e Negri, “nossa comunicação, colaboração e cooperação não se baseiam apenas no comum, elas também produzem o comum, numa espiral expansiva de relações” (Hardt e Negri, 2005: 14). Em termos de hegemonia, pode-se chegar à conclusão de que se estabelece neste período, desde meados da década de 80 até hoje, a conformação de um novo bloco histórico – constituído por ONGs, grupos culturais, artistas, intelectuais e lideranças de movimentos sociais – que articula a resistência ao bloco do poder. Esta seria, também, uma forma de confluência progressista, ou biopolítica, para continuar com Hardt e Negri, em antítese à confluência conservadora que mencionei anteriormente. Entretanto, como Hall já havia percebido, “popular”, e mesmo “povo”, são noções muito problemáticas. Não há formas puras, todas as sincronizações são parciais e as alianças e consensos, geralmente, são precários. Neste ponto, a categoria bakhtiniana de carnaval pode ser importante para esclarecer o conteúdo profundo e as potencialidades contestatórias de manifestações da cultura popular que, não raro, são rotuladas de alienantes, banais ou vazias devido, de um lado, à sua suposta não originalidade, de outro à sua ostensiva adesão ao elemento “festa”. Entretanto, se levarmos em consideração as observações de Bakhtin a respeito do carnaval, de sua capacidade de crítica à ordem hierárquica e transgressão dos valores vigentes – especialmente dos valores de “alto” e “baixo”, que segregam as manifestações populares –, então, por esse viés, o funk mais comportado mostrará potencialidades capazes de o inserir na luta contra-hegemônica, de fazê-lo participar da confluência progressista, da força cultural popular-democrática, da produção do comum. Para Hardt e Negri, a narrativa carnavalesca, dialógica e polifônica, naturalmente, pode muito facilmente assumir a forma de um naturalismo cru que se limita a refletir a vida cotidiana, mas também pode tornar-se uma forma de experimentação que liga a imaginação ao desejo e à utopia (Hardt e Negri, 2005: 273). Mas, ao filiar-se ao crime – mesmo que apenas no discurso – o proibidão instala a crise no interior do carnaval. Ao fazê-lo, ele se afasta a um só tempo do bloco de poder e do campo popular democrático, que passa a ser encarado como outra forma de verdade e autoridade de uma outra forma de poder. Insere-se numa outra perspectiva, e manterá uma espécie de desafio aos aspectos conservadores e/ou progressistas de um discurso que o circunscrevem a um campo semântico ligado ao baixo, ao desprezível e ao perigoso. É verdade que, para Bakhtin, o riso carnavalesco é ambivalente, ele abraça tanto a morte quanto a vida. Nos exemplos que o autor fornece, a partir da obra de Rabelais, da degradação do corpo que a festa carnavalesca envolvia, pode-se encontrar analogias com aspectos dos funks proibidões mais radicais de hoje. Afinal, o grotesco analisado pelo teórico russo, que se destaca por uma concepção alegre e festiva do corpo, tendendo ao rebaixamento e enfatizando o plano material contra o demasiadamente abstrato, é muito próximo do que se poderia enxergar na estética do funk, inclusive o proibidão. Se bem que, no carnaval bakhtiniano, tratava-se de uma degradação e rebaixamento perceptivelmente ambivalentes: “A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento, e por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirma ção” (Bakhtin, 1993: 19). A questão portanto é: o que o proibidão nega? Em contraste com a imagem da degradação simbólica, a referência a uma degradação real está sempre presente nas letras dos proibidões. Ela atiça os traumas desencadeados pelo que Zuenir Ventura denominou cidade partida. Essa imagem ganhou força e pautou muitas das reflexões sobre a cidade do Rio de Janeiro. Tanto que gerou obras que sugeriam alternativas, como Cidade cerzida, de Adair Rocha. Este um outro exemplo de esforço em propor uma partilha do sensível capaz de reunir as forças do campo cultural popular-democrático, que é, evidentemente, também um campo político, no sentido da produção do comum. O proibidão, ao que parece, fala sobre o que esse cerzimento deixa de fora. A questão, portanto, torna-se: o que o proibidão afirma? Eis uma grande dificuldade. Ainda que o entendamos como fenômeno estético derivado de questões sociais profundas, ele não é “aceito” no contexto de um discurso que parte da favela para propor a transformação social. Hobsbawn, no seu estudo sobre o banditismo social, logo na introdução colocou questões que, me parece, continuam merecedoras de consideração, mudando a ênfase da vida camponesa para a vida na favela. Partindo da premissa de que baseou seu estudo em poemas e baladas, o historiador se questiona sobre “até onde o ‘mito’ do banditismo esclarece quanto ao comportamento real do bandido?” ou “até que ponto os bandidos correspondem ao papel social que lhes foi atribuído no drama da vida camponesa” (Hobsbawn, 1975: 8). Mais adiante, Hobsbawn entende que, na imagem literária ou popular do bandido existe mais que a documentação da vida contemporân ea em sociedades atrasadas ou o anseio por aventura ou perdida inocência nas adiantadas. Existe aquilo que fica quando eliminamos a moldura local e social do bandoleirismo: uma emoção permanente e um papel permanente. Há a liberdade, o heroísmo e o sonho de justiça (Hobsbawn, 1975: 133). O proibidão ocupa um entre-lugar de difícil assimilação, porque aparentemente distante de um imaginário voltado para valores democráticos, de um mundo sem fronteiras e sem guerras. Mesmo assim, ele é reivindicado por seus protagonistas e se afirma como som de preto e favelado. Quando toca, de um modo ou de outro, “ninguém fica parado”. De algum modo, preserva sua ambivalência. Por isso mesmo, a dificuldade em pensá-lo se avizinha de um constrangimento. Ele proporciona um certo desconforto, ou indecidibilidade. Mais ou menos como reagiu Assis Valente, no seu samba em epígrafe, ao tiroteio em um batuque na favela."

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