Leia Bandido também tem santo, crônica de OH, MARGEM! REINVENTA OS RIOS!
Era terça-feira e eu ia para mais uma entrevista de emprego. Estava marcada às nove, por segurança resolvi sair de casa às seis. Tinha lotação, trem e metrô pela frente. O relógio tocaria às cinco horas, mas às quatro, eu estava desperta. Me banhei. Fiz as orações do dia. Pedi o emprego com fé. Senti aquela brisa quente atrás da cabeça de quando a resposta de Ogum está a caminho. Resolvi me vestir de branco. Saí.
Fechei o portão. Caminhei em direção ao ponto de parada da lotação. Um sentimento de que faltava alguma coisa tomou conta de mim. Abri a bolsa, tudo o que eu precisava estava lá: Carteiras de trabalho e de identidade, conta de luz paga, cópia do currículo impressa, endereço dos três lugares onde buscaria emprego naquele dia, sanduíche de pão com goiabada, garrafa de água e um livro para ganhar o tempo no transporte público. Não faltava nada, mas a sensação permanecia. A brisa na cabeça voltou e me impeliu de volta para dentro de casa. Fui direto até a gaveta da cômoda, peguei um fio de contas. Coloquei no pescoço, ajeitei dentro da blusa.
O retorno à casa me fez perder a lotação. Fiquei sozinha no ponto, mas logo, logo, encheria de gente. Veio vindo um rapaz de tênis de cano longo, bermudão, camiseta larga, boné e, lógico, headfone no último volume. Óculos escuros também. Ele se sentou na murada ao meu lado e tirou um cigarro. Antes de acender, parou uma Blazer de vidro fume na nossa frente, saltaram dois caras e cada um pegou num braço dele. Mandaram ficar calado e o jogaram dentro do carro. Alguém gritou lá de dentro: “Pega a mina dele também, vacilão! Vai deixar aí?” A nuvem do desespero turvou meu olhos. Não havia outra mulher por ali. A mina do desconhecido era eu.
Me empurraram para o banco de trás junto com meu companheiro de espera da lotação. Eu tentei dizer que era engano. Eu nunca o tinha visto antes, só estava ali esperando o transporte. Ia fazer entrevista de emprego. Tinha a carta de convocação na bolsa, podia mostrar... O motorista mandou que eu calasse a boca, não estava interessado. Ao meu lado, os grandões espancavam o rapaz e gritavam: “Você vai me dar meu dinheiro, vagabundo. Se não der, vai morrer. Tá ligado? Fala! Onde é que você escondeu o dinheiro? Fala, vagabundo, fala”. E dá-lhe porrada. O rapaz calado. Eu queria interferir, pedir para eles pararem de bater no menino, mas aí pensariam mesmo que eu era namorada dele.
Paramos num sinal. Tinha um carro da polícia estacionado, vazio. Os policiais deviam estar na padaria comendo coxinha. Por via das dúvidas, afundaram o rapaz no vão entre os dois bancos. Nossos sequestradores ficaram tensos. Engatilharam as armas. Eu, uma filha de Ogum, entro em pânico quando vejo arma de fogo e comecei a tremer e a chorar. Um dos caras passou o braço pelas minhas costas, tapou minha boca com uma mão e com a outra encostou o cano do revólver no meu fígado. Disse que se eu não calasse a boca naquele instante, ele apertaria o gatilho, sem dó. Calei. O sinal abriu. O motorista arrancou devagar.
Os donos do carro deram mais umas voltas com a gente. O rapaz espancado não dizia palavra. Eu também, não. Um dos rapazes que batia pegou meu pescoço, apertou meus seios com violência, disse ao suposto namorado que ele veria o que fariam comigo, na frente dele, caso não contasse onde estava o dinheiro. O menino nem abria os olhos, tinha apanhado muito, estava quase desacordado.
Chamei por Ogum e a massa de calor em movimento atrás da cabeça me levou a colocar a mão no ombro do caladão sentado à frente. Disparei a falar, era a chance única de salvar minha vida. Repeti a história da entrevista para o emprego, puxei minha carteira de trabalho, o sanduíche de goiabada. Disse que não conhecia o desafeto deles, que simplesmente eu estava no lugar errado, na hora errada. E o outro, louco, noiado, apertando meu pescoço com uma mão e esticando a outra para rasgar minha blusa. Ele arrancou dois botões e enroscou a mão na conta, puxou, cortou o dedo no fio de nylon. Arrebentou tudo. As pedras brancas, como pombas, voaram pelo carro. Bateram no vidro fume, no teto da Blazer, caíram no colo do moço da frente. Ele abriu as mãos para as miçangas e sorriu. Mandou parar o carro. Desceu, abriu a porta, estendeu a mão para mim e disse: “pode ir embora”.
Ainda ouvi ele dizendo para os amigos: “Deixa a menina em paz. Não viu que ela é filha de Oxalá? Gente de Oxalá, não mente, não!”
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