Desde que o samba é samba, novo romance de Paulo Lins, em breve, nas livrarias!
Por Maria Carolina Maia.
"Brancura, não. O tema é samba. Engana-se quem, nas primeiras páginas, imaginar que o protagonista de Desde que o Samba É Samba (Planeta, 336 páginas, 39,90 reais), livro que o carioca Paulo Lins lança dia 9 de abril, é o sambista Brancura (1908?-1935?). Como em seu romance de estreia, o memorável Cidade de Deus, lançado há quinze anos, não há neste livro um personagem principal, e sim um tema que é "protagonista". E se lá a grande questão era a violência nas favelas cariocas, aqui a questão é o samba, a sua reinvenção – ou invenção, como prefere o autor – por mestres e malandros no Rio de Janeiro, a criação da primeira escola por bambas como Ismael Silva (a Deixa Falar, em 1928) e o surgimento da umbanda, em 1908. Se não como se deram os fatos, ao menos como Paulo Lins os imaginou.
Enquanto passa uma temporada no Rio trabalhando com o diretor Luiz Fernando Carvalho em Suburbia, série com estreia prevista para o segundo semestre na Globo, Lins fala em primeira mão a VEJA sobre o novo livro e seu método de criação. Com ajuda de duas assistentes contratadas por ele mesmo, o escritor fez uma extensa pesquisa para escrever Desde que o Samba É Samba, com incursões na zona do baixo meretrício carioca e em terreiros de umbanda – ele chegou a gravar conversas com médiuns (supostamente) incorporados, daí o nome de Caboclo Ubiratan, entidade da religião, figurar entre aqueles a quem dirige seus agradecimentos ao final do livro.
“Cheguei a pesquisar a ficha policial de alguns personagens. O Ismael Silva, por exemplo, foi preso uns dois anos porque atirou numa pessoa. Muitos também eram presos só por fazer samba”, conta. De Silva, no entanto, Lins não cita a prisão. Em vez dela, cita a sífilis e crava, com todas as letras e gírias, que o músico era homossexual – suspeita que sempre ficou no terreno dos boatos. Foi assim, recortando e colando casos reais e ficcionais, que ele construiu o livro. Alguns personagens, como a prostituta Valdirene e o português Sodré, foram criados para dar tramas ao romance – Valdirene e Sodré, por exemplo, formam um triângulo amoroso com Brancura. “Verdade mesmo é a invenção do samba”, afirma Lins.
O escritor, que conta ter composto dois sambas-enredo ainda adolescente, para um bloco de rua da Cidade de Deus, deu início a Desde que o Samba É Samba em 2005. Mas, como passava por um grande bloqueio criativo após o estouro do primeiro romance, transportado para o cinema por Fernando Meirelles e vendido para mais de 20 países, interrompeu e retomou diversas vezes o projeto, até finalizá-lo na virada de 2011 para 2012. O bloqueio vinha, em parte, pelo receio de não repetir o sucesso de Cidade de Deus. Desde que o Samba É Samba é, de fato, um livro menor que o anterior, especialmente porque, na reta final, dá a impressão de perder o fio condutor.
Nas primeiras 200 páginas, o triângulo amoroso Brancura-Valdirene-Sodré domina a narrativa, intercalando-se com histórias de Ismael Silva (como a sua descoberta por Francisco Alves, o rei da voz) e Bide (a invenção do surdo e a recriação do tamborim), e imprimindo ritmo ao livro. Depois, porém, o triângulo dá lugar à narração, sem sobressaltos ou surpresas, da criação de Deixa Falar, a primeira escola de samba do país, e da ascensão do ritmo de Bide e Silva entre os ilustrados, como Mário de Andrade (também taxado de gay), Manuel Bandeira, Carmem Miranda e o já citado Francisco Alves.
Ao mesmo tempo, Desde que o Samba É Samba tem um texto que, assim como o de Cidade de Deus, se candidata a uma adaptação, seja para a TV, seja para o cinema. Lins escreve de um modo fluido, como se fizesse um roteiro. De temática popular, próxima inclusive à de Jorge Amado, o romance é uma aposta da editora Planeta, que comprou o passe de Lins da Companhia das Letras por 100.000 dólares em 2004. O livro sai com uma tiragem de 100.000 cópias. No segundo semestre, a editora deve lançar um título infantojuvenil do escritor.
Mas foi sobre Desde que o Samba É Samba, seu segundo romance adulto, que Paulo Lins falou ao site de VEJA. Confira abaixo os melhores momentos da conversa.
Você teve um bloqueio criativo de cerca de dez anos após o estouro de Cidade de Deus. O lançamento de Desde que o Samba É Samba provoca muita ansiedade? Eu fiquei ansioso até entregar o livro aos meus leitores – como Heloísa Buarque de Holanda (especialista em literatura), Luiz Eduardo Soares (ex-secretário de Segurança do Rio e autor de Elite da Tropa, livro que deu origem ao filme Tropa de Elite), Cabelo Saad (artista plástico, dá nome a um personagem secundário em Desde que o Samba É Samba), Maria Elisa Cevasco (professora da USP), Marcelo Paixão (professor de Economia Social da UFRJ), Eduardo Assis Duarte (critico literário e professor da UFMG), João Batista Vargens (professor de árabe e samba da UFRJ) e Bianca Ramoneda (jornalista). Esse pessoal fez uma revisão do livro para mim. A Heloísa, principalmente. Ela acompanhou quase toda a construção do livro, leu as primeiras páginas, depois, quando eu tinha acabado de escrever, ela leu de novo e pediu que eu cortasse alguma coisa e mudasse o final do livro. Eu reescrevi algumas passagens por sugestão dela, que achou que eu tinha perdido a mão ali. Ela é muito sincera comigo. No fim, ela gostou e fez a contra-capa.
Desde que o Samba É Samba, pelo seu universo, tem um quê de Jorge Amado. Além de seus leitores, o escritor baiano também foi uma referência para o livro? Jorge Amado é um autor de que gosto muito, e enquanto fazia o livro de fato dialoguei com ele, como dialoguei com as obras de Marçal de Aquino, Ferrez, o Arnaldo Antunes, e mesmo Cabelo, que é artista plástico. Vi uma adaptação teatral de Capitães da Areia e reli Mar Morto. Ainda folheei os livros Jubiabá e Gabriela, para rever alguns personagens. O tema do meu novo romance se aproxima do universo do Jorge Amado, porque fala de tias baianas que migraram para o Rio de Janeiro no começo do século XX, tem sexo, candomblé e umbanda. Eu precisava rever sua obra, sobretudo Capitães da Areia, em que a polícia prende a imagem de Xangô.
Você lê bastante enquanto escreve? Depende. Durante as pausas que dou na escrita, leio romances. Mas, quando estou escrevendo, costumo ler poesia. No caso de Desde que o Samba É Samba, também escutei muita música enquanto escrevia, e a música é uma forma de poesia falada. A poesia ajuda a escrever o romance porque é mais concisa, dá uma precisão maior para escrever, para construir personagens sem muita gordura. Eu gosto disso, de dizer quem é o personagem em poucas palavras, numa só frase. A poesia também dá mais impacto à linguagem. A poesia é a verdade, quem falou isso foi o Paulo Leminsky. Você vê que, quando os poetas vão editar seus livros, eles não deixam que se mexa em nenhuma palavra. Porque a poesia é feita de precisão, não tem nem um pouco a mais nem um pouco a menos. Cada palavra tem seu lugar certo.
Por falar em samba, no livro você toma partido do Rio de Janeiro, em detrimento da Bahia, na invenção do ritmo. E o que muitos historiadores contam é que o samba nasceu na Bahia e chegou ao Rio com os baianos que migraram para lá, depois foi se transformando... Mas que sambista tem na Bahia? Cadê o Zeca (Pagodinho) de lá? O samba nasceu no Rio. Quem fala que nasceu na Bahia não tem conhecimento da história.
Além de ouvir samba enquanto escrevia, você fez mais algum tipo de laboratório ou pesquisa? Sim. Eu não sou filho de santo nem iniciado ou médium, mas fui muitas vezes à umbanda, que eu já conhecia desde novo, porque minha mãe freqüentava, para pegar mais detalhes do culto. Conversei com várias entidades em sessões de umbanda e até gravei algumas conversas, coloquei a visão deles no livro, foi um trabalho etnográfico maravilhoso, com ajuda de duas assistentes. Não pesquisei a fundo nenhum livro de umbanda, fiz trabalho de campo. Também fui à zona do baixo meretrício conversar com prostitutas. Li sobre tudo, também.
Mas, apesar da pesquisa, você toma muita liberdade com os fatos e os personagens. A liberdade foi maior do que em Cidade de Deus, também feito a partir de pesquisas? Ah, com os dois tomei bastante liberdade. Eu me joguei, você tem de se jogar. Tudo o que eu podia falar, falei. Não tive nenhuma barreira.
Com personagens como Ismael Silva e Mario de Andrade, considerados gays por boatos, a liberdade é clara. Eles são assumidíssimos em Desde que o Samba É Samba. Algumas pessoas com quem falei no Rio, durante a pesquisa, comentaram sobre a homossexualidade do Ismael Silva. Fiquei na dúvida se colocava isso ou não no livro. Quando voltei a São Paulo, onde moro hoje, veio a notícia daquele jovem que foi agredido na avenida Paulista com uma lâmpada fluorescente. Aí, decidi botar no livro que o Silva era gay. Porque tudo isso é preconceito – a agressão na rua a um homossexual e o silêncio sobre a sexualidade de uma figura histórica.
Você tem receio de que algum familiar reclame da abordagem do livro? Ah, não, não tenho medo disso, não. Não posso construir um trabalho pensando nisso, eu tenho de ser livre para falar o que quiser, sem preconceitos. E a editora, depois de lido o livro, disse para eu não me preocupar, que não teria problemas.
Desde que o Samba É Samba mostra um Rio de Janeiro muito diferente daquele de Cidade de Deus. Você queria de certa forma resgatar um outro Rio? Sou movido por questões sociais. Quando eu fiz Cidade de Deus, eu queria que diminuísse a violência no Brasil. E, quando escrevi Desde que o Samba É Samba, eu queria fazer justiça aos grandes artistas que fizeram o samba. Quanto ao Rio antigo, a violência era aparentemente menor, mas existia de outras formas. O negro estava saindo da escravidão, era ainda submisso e perseguido. O racismo era uma coisa normal. O livro tem menos violência porque eu não toco nesse assunto. Em Cidade de Deus, o tema era a própria violência. Em Desde que o Samba É Samba, o foco é a produção cultural de um povo. O que importa no livro é a virada, o samba e a umbanda como questões estruturais, como a força de uma cultura vai de encontro com o preconceito e o racismo.
Por outro lado, Desde que o Samba É Samba mostra as raízes da violência que se verá em Cidade de Deus: policial vendendo arma, carregamento de maconha chegando. Sim, o samba nasceu em um mundo marginal, na periferia em torno da praça Onze de Junho, na zona do baixo meretrício, ali no Estácio. O samba era marginal como era o funk há alguns anos. A Marquês de Sapucaí, que hoje é passarela de samba, era uma área marginal. O negro livre, recém-libertado, era marginal.
O Estado já era ausente ali. Ausente, não. O Estado era bandido. Era corrupto como sempre foi. A polícia matou um garoto aqui no Rio com tiro de fuzil. O Estado é assassino. E era pior com os negros."
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