A merendeira e os biscoitos na escola
Por Cidinha Da Silva
Dona Elvira era uma preta de formas generosas, tão fofas quanto seu coração de grande-mãe. Conhecia a meninada toda da escola e era a mãe postiça de muitos deles. Sabia da cachaça do pai de um, do HIV da mãe de outro, do assassinato do irmão daquela, da chacina dos irmãos e primos daquele outro, da perseguição policial sofrida pelo menino de dreads, da orfandade e abandono de boa parte deles. Monitorava alguns com conselhos e puxões de orelha no cuidado de impedir que engrossassem as fileiras do tráfico. Conhecia-os como se filhos fossem.
Tinha sua fé e suas guias e ostentava ambas no dia a dia do trabalho como merendeira na escola. Vez por outra chamava um professor e dizia: “viu pro, tenha paciência com a aluna tal porque ela está passando por esse ou aquele problema em casa. Seja mais duro com o fulaninho porque o pai é um frouxo, desleixado, e ele precisa de referência de homem que tenha comando e responsabilidade para aprender a ser homem também.”
A convite da direção Dona Elvira passou a frequentar as reuniões do conselho de classe e era senhora das ponderações mais perspicazes e objetivas durante as avaliações dos estudantes. Não fazia defesa acrítica dos meninos, não, não fazia isso, mas tinha a capacidade de compreender o contexto da vida deles e trazia essas informações para os professores e direção, mais preocupados com o cumprimento dos conteúdos e a disciplina em sala de aula.
Naquela reunião do conselho havia um burburinho e dona Elvira percebeu logo que o caso era com ela. A orientadora educacional que a havia convidado para participar do parlatório tomou a palavra e professoralmente apresentou-lhe a lei que proibia que os alunos recebessem merenda para levar à casa. Dona Elvira ouviu impassível a exposição da lei. Depois veio a acusação: ela estaria enchendo o fichário de alguns alunos de biscoitos água e sal. E a sentença: ela deveria parar imediatamente, pois infringira a lei.
Quieta estava dona Elvira e quieta permaneceu. Só seus olhos se moviam olhando os olhos ausentes dos professores. Por fim, ela perguntou para a orientadora: pro, a senhora já passou fome? E vocês, algum de vocês já passou fome? Eu já! Eu só não dou comida de sal para esses meninos porque não cabe no fichário. Não dou cachorro-quente para levar para casa porque não cabe também, se coubesse, eu dava. Vocês não sabem o que é deitar com fome, não dormir porque o pesadelo da fome não deixa e de manhã ter aquela fome curtida na barriga que vai te acompanhar todo o dia, vai morrer no corpo e vai doer a vida inteira. E enquanto eles passarem fome em casa e tiver biscoito nessa escola, eles vão levar e ninguém vai me impedir de dar, não é pro?
Eu respondi que sim e todo mundo já tinha abaixado a cabeça na hora mesma da pergunta. Quem é que pode com dona Elvira?
Dona Elvira era uma preta de formas generosas, tão fofas quanto seu coração de grande-mãe. Conhecia a meninada toda da escola e era a mãe postiça de muitos deles. Sabia da cachaça do pai de um, do HIV da mãe de outro, do assassinato do irmão daquela, da chacina dos irmãos e primos daquele outro, da perseguição policial sofrida pelo menino de dreads, da orfandade e abandono de boa parte deles. Monitorava alguns com conselhos e puxões de orelha no cuidado de impedir que engrossassem as fileiras do tráfico. Conhecia-os como se filhos fossem.
Tinha sua fé e suas guias e ostentava ambas no dia a dia do trabalho como merendeira na escola. Vez por outra chamava um professor e dizia: “viu pro, tenha paciência com a aluna tal porque ela está passando por esse ou aquele problema em casa. Seja mais duro com o fulaninho porque o pai é um frouxo, desleixado, e ele precisa de referência de homem que tenha comando e responsabilidade para aprender a ser homem também.”
A convite da direção Dona Elvira passou a frequentar as reuniões do conselho de classe e era senhora das ponderações mais perspicazes e objetivas durante as avaliações dos estudantes. Não fazia defesa acrítica dos meninos, não, não fazia isso, mas tinha a capacidade de compreender o contexto da vida deles e trazia essas informações para os professores e direção, mais preocupados com o cumprimento dos conteúdos e a disciplina em sala de aula.
Naquela reunião do conselho havia um burburinho e dona Elvira percebeu logo que o caso era com ela. A orientadora educacional que a havia convidado para participar do parlatório tomou a palavra e professoralmente apresentou-lhe a lei que proibia que os alunos recebessem merenda para levar à casa. Dona Elvira ouviu impassível a exposição da lei. Depois veio a acusação: ela estaria enchendo o fichário de alguns alunos de biscoitos água e sal. E a sentença: ela deveria parar imediatamente, pois infringira a lei.
Quieta estava dona Elvira e quieta permaneceu. Só seus olhos se moviam olhando os olhos ausentes dos professores. Por fim, ela perguntou para a orientadora: pro, a senhora já passou fome? E vocês, algum de vocês já passou fome? Eu já! Eu só não dou comida de sal para esses meninos porque não cabe no fichário. Não dou cachorro-quente para levar para casa porque não cabe também, se coubesse, eu dava. Vocês não sabem o que é deitar com fome, não dormir porque o pesadelo da fome não deixa e de manhã ter aquela fome curtida na barriga que vai te acompanhar todo o dia, vai morrer no corpo e vai doer a vida inteira. E enquanto eles passarem fome em casa e tiver biscoito nessa escola, eles vão levar e ninguém vai me impedir de dar, não é pro?
Eu respondi que sim e todo mundo já tinha abaixado a cabeça na hora mesma da pergunta. Quem é que pode com dona Elvira?
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