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Entrevista de Cidinha da Silva ao Blogueiras Negras

Em primeiro lugar (depois do Fora Temer!) quero agradecer a perguntas tão generosas e bem cuidadas na formulação.
O humor é provavelmente uma característica de personalidade da autora exercitada na escrita. Gosto de rir de coisas ridículas, absurdas e das simples e engraçadas também, a começar pelas minhas próprias bizarrices. Eu acordo de bom humor e sigo assim até que dia me chateie. Nos textos, sempre que possível, gosto de despertar o riso. Gosto quando rio do que escrevo.
Quanto à fúria, a mim revelada pelo Eduardo Oliveira no posfácio, já que eu não havia percebido isso, imagino que se deva às situações, aos temas abordados. À necessidade de colocar a mão em feridas e higienizá-las, como caminho para a cicatrização, para a cura. Mas afirmo que não é algo consciente e cultivado como o humor, não.
Sobre-viventes é um livro de crônicas do dia-a-dia e seus textos tem muita coisa do cotidiano, sob um olhar atento as construções sociais de base sexista, racista e homofóbica. O que há de diferente em sobre-viventes que não há nos outros? E o que seria semelhante?
Uai, acho que a tal “fúria” pode ser detectada neste Sobre-viventes! como novidade, e talvez não esteja nos livros anteriores. Eu tinha consciência de que se tratava de um livro duro, mas não, furioso.
Em comum tem o humor, a acidez, a diversidade de temas, a luta eterna entre o que quero escrever (os textos mais fluidos e divertidos) e o que precisa ser escrito, as urgências desse tempo reacionário, autoritário em que vivemos, no qual a violência aos direitos humanos recrudesce a cada dia. E não há como passar ao largo disso. É preciso tratar disso. Na literatura também. Sempre que possível, com criatividade e surpresa na abordagem, no manejo da linguagem.
Percebemos que a cada dia, a nossa reação ou paralisação frente ao racismo e outras violências que sofremos tem nos adoecido – a nós mulheres negras – física, mental e espiritualmente. Suas crônicas trazem um humor ácido e uma saída irônica as situações de discriminação e violências raciais, sexistas e homofóbicas. Você acredita que essa é a saída? Que esse é o caminho para não adoecermos?
Não, não acho que essa seja A saída, não. É uma saída literária, apenas isso. Não é recomendação, tampouco receita para ninguém. Não há saída pelo riso e pela ironia para o número crescente de mulheres, e de mulheres negras em pariticular violentadas. A saída é pela resistência ativa, pela denúncia, pelas ações concretas, pelo aprimoramento da lei, pelo fim da impunidade, pela ampliação da base social e institucional de respeito aos direitos das mulheres.
Não há saída pelo riso e pela ironia para os assassinatos de jovens negros e LGBTs. Existe a reinvenção da literatura e existe a vida real que também precisa ser reinventada a favor do humano, mas esta segunda reinvenção tem muito sangue envolvido, de todos os lados, infelizmente.
A tinta, a ironia e o humor são artifícios muito frágeis e inadequados para enfrentar a truculência da vida que oprime. Não nos cabem ilusões, tampouco posturas cabotinas.
Nas suas crônicas, as imagens cotidianas são perfeitamente desenhadas. A gente consegue ver tudo, imaginar as situações e projetá-las na nossa frente. O que você gosta de ler? Quem e o que te inspira a trazer essas imagens, além do dia-a-dia?
Gosto de ler a literatura que me convulsiona, que me tira do chão. Que me faz deixar de fazer outras coisas para ler. Que me faz achar que quando não leio estou perdendo tempo. Que me faz lamentar por não ter lido antes. Quanto a autoras e autores, citarei a leitura mais recente. Terminei ontem o “Quarenta dias”, da Maria Valéria Rezende. E hoje comecei a leitura do primeiro romance escrito por ela, o “Vasto mundo”. São leituras que me provocam o que descrevi acima.
Meu ofício é manufaturar a linguagem, produzir e despertar sons, sabores, referências, imagens, sentidos por meio da palavra e sua dança, suas encruzilhadas, seus descaminhos. Extrair da palavra a essência que proporcione a quem quer que me leia a degustação. Esta é minha motivação mais constante.
Em “Vida de Gato”, há uma crítica ferrenha à heteronormatividade e aos padrões de comportamento do que a sociedade espera de um homem negro. Ao que você atribui essa padronização do que é a vida ainda hoje? O que é possível fazer para que esses padrões sejam destruídos?
Poxa, atribuo a tanta coisa: à heteronormatividade, ao capital, ao machismo, à misoginia, ao racismo estrutural, ao racismo internalizado. Cada um com seu quinhão de desesperança, de achatamento do humano, de normatização da vida. Creio que o enfrentamento passa pela desconstrução dos padrões; pelo reconhecimento de privilégios e por sua desmontagem crítica; pelo fortalecimento de sujeitos historicamente fragilizados.
Sobre a crônica em tela, “Vida de gato” aborda jogos de interesses em relações afetivo-sexuais entre gatas e gatos marcados pela cor. Neste caso, só gatos que preferem gatas e gatas que preferem gatos, não porque os homoafetivos sejam “santos”, mas por uma escolha de enfoque.
Interessante que quando este texto foi disponibilizado na Web, alguns homens negros reagiram. Um em especial, jovem e promissor intelectual, argumentou que, “como homem negro em reconstrução” sentia-se obrigado a responder o texto. Tratou então de reescrevê-lo. O fato incoerente é que manteve minha assinatura.
Fiquei perplexa e em silêncio. Refletia sobre a intervenção na obra ficcional de alguém porque trata de tema coletivo, cuja discussão, interessa e afeta diretamente a um coletivo.
Frente ao barulho do silêncio, o jovem intelectual me procurou e justificou-se. Ouvi e disse a ele três coisas: na primeira, mencionei minha perplexidade frente  ao vício horrível de tomar a produção criativa de outrem e interferir nela como fosse um panfleto de escrita coletiva, em que qualquer um pudesse meter o bedelho.
A segunda é que não concedo a ninguém o direito de mexer nos meus textos mantendo minha assinatura. No caso dele, como queria valer-se de minha ficção, reescrevendo-a, que me desse o crédito do texto-base e tratasse de divulgar sua reescritura assinada.
A terceira (diante da contra-argumentação dele) foi que fizesse o favor de demarcar suas intervenções no texto em letras maiúsculas e em cor diferente do original para diferenciá-las do que fora escrito por mim. Entre outros motivos porque a escrita dele me comprometia, haja vista que eu não escreveria aquelas coisas, tampouco daquela forma.
Seu olhar sobre o racismo é bastante firme, seco, como acreditamos que se faz necessário ser. Você acredita que um dia essa petulância racista, essa ousadia em verbalizar e performar racismo será menor? Em outras palavras, há um horizonte para uma sociedade menos racista?
Creio que sim, sou otimista e vejo algumas mudanças ao longo dos últimos 25 anos, mas as mudanças mais substantivas virão à medida que a consciência negra for ampliada, que a base comum de letramento racial também se alargue e que as políticas públicas de combate ao racismo e de promoção da igualdade racial se consolidem.
Esse ano a Lei Maria da Penha completa 10 anos. As estatísticas – que agora aparecem – nos mostram como as mais vulneráveis quando o assunto é também violência. No imaginário social, a máxima “se meter em briga de marido e mulher” ainda está fora de cogitação. Como a literatura pode ajudar nesse combate? Como os textos – sejam eles peças de teatro, crônicas, poesias e novelas – podem ajudar no desmanchar desse panorama?
Existe uma literatura que se intitula de resistência que tem se ocupado desses temas. Parece-me que há dois caminhos possíveis e simultâneos para, o primeiro é de denúncia e desconstrução desse universo violento. O segundo é de construção de um contraponto a tudo isso, de um lugar de valorização das mulheres como sujeitos fortes e detentoras das rédeas de sua própria história.
A crônica “Vale tudo: O som e a fúria de Tim Maia” fala muito da indignação que sentimos sobre o modo, o jeito de se falar e de se apresentar os artistas negro, sobretudo os grandes ídolos. Logo após a exibição do filme (produção globo baseada na obra de Motta), Alex Ratts escreveu sobre a necessidade de um outro olhar sobre os ídolos da música negra:  um olhar para esses artistas negros brasileiros como seres diaspóricos. Ao que você atribui essa pobreza no olhar dos biógrafos que escrevem sobre personagens negros? Porque essa dificuldade dos escritores brancos em ter um outro olhar?
Atribuo ao racismo e seus pressupostos de subalternização da pessoa negra.
A sua escrita como ferramenta de conhecimento, como espaço de se identificar e reconhecer tem um poder muito grande. As palavras e as relações propositais com os elementos da negritude, com a religião de matriz africana aparecem naturalmente e de maneira bem leve nos seus textos. Qual a relação da sua escrita com Exu?
Exu é o princípio de tudo. É a boca que devora o mundo e também que o devolve. É a contradição. O homem das múltiplas faces é o patrono da comunicação. Quem escreve se comunica ou, pelo menos, pretende se comunicar. Exu, então, por excelência, é regente da arte da escrita. Sou reverente e grata ao mesmo tempo.
Você completa logo mais 10 anos de escrevivência, como diria nossa querida Conceição Evaristo. O Sobre-viventes já foi lançado em algumas cidades, como Recife e Salvador, cidades que te acolheram e acolhem seu trabalho de literatura banta. Como tem sido a reação das leitoras e leitores? Como é poder celebrar esses anos de escrevivência nessa que é uma das áreas mais afetadas pelo racismo e sexismo que é a literatura?
Me conforta muito o termo “literatura banta” cunhado por Eduardo Oliveira para o meu trabalho. Esse reconhecimento de elementos de uma perspectiva banto na minha literatura me alegra sobremaneira, pois são 10 anos de trabalho assentados na intuição que se alimenta de uma memória ancestral que nos é comum; no pensamento construído a partir da pesquisa e do estudo; e no apuro da técnica de escrita, de escuta, e construção de linguagem que amplie os sentidos do meu olhar e da minha dicção. Completar esses primeiros 10 anos de carreira com nove livros de literatura publicados, dois livros organizados que também conquistaram um lugar nos campos em que se propuseram a atuar, a saber, ações afirmativas em educação e políticas públicas para o livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil na perspectiva de africanidades, além de ter muitos projetos pela frente, são motivos de profunda alegria. Alegria compartilhada com cada pessoa que me lê.
Imagem – reprodução Blog da Cidinha

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