Sobre a OFF FLIP 2016

Um gesto político: Casa Libre e Nuvem de Livros em Paraty
PUBLISHNEWS, RAQUEL MENEZES E LUIS MAFFEI*, 05/07/2016
Presidente da Libre e curador da programação da Casa Libre e Nuvem de Livros fazem balanço da programação da entidade durante a Flip
Duas evidências ou dois acontecimentos sublinharam a necessidade de um conjunto de discussões tão veemente e aberto como as que tiveram lugar na Casa Libre e Nuvem de Livros 2016, que discutiu Violência — a cultura do medo. O primeiro, benfazejo, foi um depoimento lido por Cesar William, brigadista negro que trabalhou na Casa desde quarta-feira. Cesar (que, além de bombeiro, é compositor) manifestou, movido pelo pensamento em atrito e encontro, o quanto se sentiu representado e alterado naqueles dias, num texto breve e sensível. O segundo, trágico, desgraçado: no domingo em que todos voltamos de Paraty, soubemos que Diego Vieira Machado, estudante da UFRJ, foi encontrado assassinado no campus da UFRJ, na Ilha do Fundão, em mais um dos inúmeros casos concretos de violência no Brasil — terá sido um crime de ódio, homofóbico?
Público lota Casa Libre e Nuvens de Livros em Paraty | © Divulgação
Público lota Casa Libre e Nuvens de Livros em Paraty | © Divulgação
A Libre é uma entidade que reúne editoras independentes — a parceria com a Nuvem de Livros é inestimável para a realização, desde 2014, da Casa em Paraty. Seria possível uma tamanha independência de pensamento não fosse esse primado da independência como princípio? Discutir violência não impede a violência, Diego que o diga. Mas é preciso que essa discussão se dê por dentro, convocando vozes como a do pastor Alexandre Feitosa, que defende uma igreja inclusiva por ter, como homossexual, sofrido longos anos de uma violência religiosa cujos argumentos, de acordo com um estudo histórico-crítico da Bíblia, não se sustentam. É preciso, pois, discutir a homofobia evangélica com os evangelhos abertos, e, como revelou a escritora Janaína Leslão, falar, esteticamente, de transsexualidade e variados tipos de afetos com as crianças e os adolescentes. Vozes também como a de Cidinha da Silva, ativista e escritora que, a partir de seu esforço em formular problemáticas de enfrentamento convocando matrizes afro-brasileiras, negras (também representadas na Casa pelo filósofo Renato Noguera), representa uma minoria que muitas vezes é, sob diversos argumentos, silenciada.
Em certo momento de sua lucidamente incômoda intervenção -- com sala tão lotada quanto a que assistiu à convocação humanista de Leonardo Boff --, Marcelo Freixo perguntou quantos espaços da Flip se abriram à discussão sobre sistema prisional, ao que alguns audientes responderam: o nosso, quando Orlando Zaccone e Mariana Kalil discutiram a cultura punitiva brasileira. Violência se pensa, se discute, também dentro da literatura, como deixaram claro, cada um numa sessão, Noemi Jaffe, Ricardo Lísias e Cristina Judar, capazes, inclusive, de cultivar uma espécie de violência da linguagem, tática de enfrentamento de aspectos como estrangeiridade, no caso da Noemi, homoafetividade, no de Cristina, e até um inquérito policial motivado por sua obra, como no de Lísias — que, além de estar numa mesa, encenou uma palestra-performance, levando a ficção ao limite de seu encontro desencontrado com a história. Violência em textos, mas sem estética e com elevado grau de intencionalidade política, orienta os discursos da mídia hegemônica, como deixou claro o historiador Adriano de Freixo.
A violência também atrita o trabalho teatral de Walter Macedo Filho, que recebeu uma notável leitura dramática, e é a razão de ser da linda existência d’As Depejadas, grupo da periferia de Guarulhos formado por cinco jovens mulheres cuja voz potente precisa sair pelo país; a Casa foi um primeiro eco. E é claro que quando a Casa recebe a senadora Fátima Bezerra e Simone Monteiro, da secretaria de Educação do Município do Rio de Janeiro, para falar de política do livro sem meias palavras, a possibilidade de enfrentarmos a violência pela leitura recebe uma forte dose de factualidade.
A Casa Libre e Nuvem de Livros, em virtude da notável afluência de público, mostra já ser uma tradição no contexto da FLIP. Não salvaremos, por ora, as vidas dos incontáveis Diegos que a nossa violência de cada dia insiste em destruir, mas cumpriremos a tarefa de entrar no mundo sem medo nenhum da diferença e cultivando, cada vez mais e melhor, a independência — Cesar William que o diga.

* Raquel Menezes é presidente da Libre, entidade que organiza -- em parceria com a Nuvem de Livros e desde 2014 -- a Casa Libre e Nuvem de Livros durante a Flip. Luis Maffei assina a curadoria da programação da casa. Os dois são editores e sócios na editora Oficina Raquel.

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