Corra para o cinema e depare-se com o racismo miúdo de todos os dias!
Por Cidinha da Silva
O filme “Corra” (Get out / Jordan
Peele) foi o responsável por minha estréia como expectadora de filmes de
suspense/terror numa sala de cinema. Minha experiência anterior e insignificante
aconteceu frente à televisão, com dois ou três filmes que não consegui assistir
até o final. Ou seja, vocês estão diante da confissão de alguém que não conhece
e tampouco se anima com o gênero.
Movi-me até o cinema por duas
vezes, devo dizer, para assistir a um filme de terror/suspense que tratava do
terror do racismo, pelo que depreendi das resenhas lidas. Não me decepcionei. Aliás,
me surpreendi muito. Positivamente.
Compartilho aqui as principais
impressões de uma pessoa que tem alguma habilidade para compreender a
operacionalidade do racismo e procurou decodificar como Peele fez o mesmo
exercício numa obra cinematográfica inusitada. Não prometo mais do que isso
neste texto.
A leitura do filme começa pelos
locais e platéias. Estive em duas salas de ambiente cult distintas. A primeira,
dentro da Universidade Federal da Bahia, freqüentada por estudantes e
principalmente por professoras/es. Nesse tipo de filme que toca em questões
sensíveis aos Direitos Humanos conta-se com uma reação de parte da platéia que
quer mostrar o quanto é politizada. Quando enxerga pessoas negras afirmadas,
então, capricham nos suspiros, comentários sobre o absurdo das situações
racistas e outras intervenções durante a exibição, em tom especialmente alto
que chega a atrapalhar a audição dos diálogos.
A segunda sala foi um espaço cult
em versão comercial, o Cine Belas Artes, na cidade de São Paulo. Ali, com um
público maior e mais diverso, a preocupação de parte da platéia em ser
politicamente correta permanece, mas as interferências são diluídas e a gente diretamente
envolvida na trama do filme que, afinal, trata de coisas muito conhecidas por
nós, negros (e por isso são aterrorizantes), tem um pouco mais de paz para
assistir o filme.
Passei os olhos por alguns
comentários feitos por mulheres negras, principalmente, no sentido de que o
filme abordaria em profundidade as relações afetivo-sexuais entre homens negros
e mulheres brancas. Não tive essa sensação. A meu sentir, a presença do racismo
na relação amorosa interracial entre os protagonistas do filme, Chris e Rose, é
mais um dos aspectos sinistros do racismo, mas não o principal ou central.
Dito de outra forma, Chris não me
pareceu em momento algum que quisesse “ser branco”, que quisesse abrir mão de
ser negro ao namorar a personagem branca. Até porque, não existe espaço para
isso na sociedade estadunidense. Chris me pareceu mais um desses meninos negros
perdidos, fragilizados (no caso dele pela perda da mãe e ausência do pai),
talvez vítimas da rejeição e da estereotipia causadas e alimentadas pelo
racismo, e que se deslumbram quando qualquer mulher branca acena para eles. Mas
todos sabem que continuam sendo negros subalternizados na hierarquia racial dos
afetos, mesmo tendo “conquistado” o tipo de mulher valorizado pelos homens
brancos, os donos do poder.
Escuso-me aqui de discutir
histórias de amor entre homens negros e mulheres brancas, não é o foco do
texto. Interesso-me apenas por problematizar o suposto desejo de Chris de “deixar
de ser negro” por estar envolvido com Rose, mulher branca.
Chris, inclusive, é um fotógrafo
bem sucedido, que registra o mundo negro como se verá ao longo da narrativa
(mantém-se ligado às referências que o formaram e que o projetam). É
reconhecido profissionalmente e está no lugar dos negros que podem buscar o que
há de melhor para si, porque se descolaram (com sucesso) da massa anônima. Por
conseguinte, mais ou menos por uma questão de lógica da ascensão social, esses
homens negros buscarão mulheres brancas, comprovação viva de que eles estão por
cima da carne seca. A seguir, experimentarão a complacência possível da
branquitude, a ilusão de pertencer ao clube vip porque a marca do carro que
dirigem é a mesma do carro do chefe. Mas ninguém deixa de ser negro por isso,
não.
O diálogo entre Chris e o
funcionário negro da fazenda dos sogros é elucidador, diz o caseiro: “ela (a
namorada branca) é de primeira linha, não é? Se fosse minha eu não largava
mais”. Rose é o emblema do sucesso que ali, na intimidade da conversa entre
dois negros, é desnudado por um deles, aquele que já perdeu tudo. Até mesmo a
própria vida.
O filme propõe outras tantas
abordagens complexas. Logo no início o aspecto traiçoeiro do racismo se
evidencia. Um músico negro que depois saberemos ser do Harlem, caminha tenso
por um bairro de classe média branca a procura de um endereço. Talvez ele tema
a polícia que considera os negros como suspeitos preferenciais porque, como
justificativa do teatro do absurdo, precisam suspeitar de alguém. Talvez esteja
com medo de cães treinados para atacar determinados perfis físicos como o seu, estigmatizados
como ladrões. Talvez tema a segurança privada dos bairros endinheirados que
como a polícia, o considerará suspeito. Contudo, o racismo tem tantas faces e
máscaras que se apresentará a partir de outro lugar não especulado aqui. Um
homem trajando um capacete de ferro, saído de um imponente carro branco, lhe
aplicará um golpe de Jiu Jitsu (pelas costas) que o fará desmaiar. Depois ele
será jogado no porta-malas.
Notem que é um homem branco que
dirige um carro usando um capacete. Está bem, o cara pode ter posto o capacete
apenas para atacar o homem negro, não dirigia com ele na cabeça. Mas, se
considerarmos a primeira hipótese, posso também ler o ato como alegoria de que
o branco pode tudo. Aquele homem branco de capacete e dirigindo um carro,
provavelmente não seria abordado pela polícia do bairro, talvez nem fosse notado,
tal qual um homem negro andando a pé seria (será). Porque aos negros, sabemos,
não se garante plenamente o direito de ir e vir previsto em todas as
constituições democráticas.
Outra marca da complexidade do
racismo aparece quando Chris é hipnotizado como primeira fase do processo de
espoliação de si e tenta resistir. Ele não quer se lembrar da dor que o
desestruturou na infância, mas é forçado a isso. O racismo estimula nossos
estados de fragilidade e desamparo. Chris afunda e fica lá, num lugar perdido. O
chão escapa, a sustentação garantida pelas próprias pernas desaparece. Ele é
jogado no buraco profundo de sua dor, da perda da mãe, pela qual ele se culpa,
como se fosse possível tê-la salvo.
Instala-se a tortura de reviver a
dor e a incompreensão do que se passa. É um pesadelo que não termina. É o
buraco da impotência da criança negra que se vê sozinha no mundo e que poderá
tornar-se um adulto suscetível a salvadores e hipnotizadores que manipulem sua
dor. A namorada fará isso.
Por fim, o mais macabro de tudo é
como o racismo escolhe aquilo que Chris tem de mais adequado e útil aos brancos
do filme de terror, só àqueles, para alívio de alguns leitores desconfiados de
“racismo reverso” da cronista.
Chris é o prêmio do jogo. Ele
emprestará sua virilidade ao velho caquético, cuja mulher saliva ao tocar as
carnes rijas do negro; sua força física ao jovem lutador que não é tão forte
quanto ele; seu charme ao homem que acha que ser negro está na moda; sua
inteligência e perspicácia poderão servir a outro; sua visão perfeita, sua
capacidade de enxergar o mundo e produzir arte poderão restituir a visão a um
cego. Basta apenas preencher a cartela e vencer o Bingo para ganhar como prêmio
o corpo e os dotes diversos de Chris, o negro, e assim revigorar uma brancura
deficitária.
“Corra” é realmente um filme de
terror racista e o mais aterrador é a certeza de que está embasado em fatos
reais, amplamente conhecidos e experimentados por nós, gente negra do mundo.
Comentários