Vozes da bibliodiversidade na Flip e em outras festividades literárias



Por Cidinha da Silva

O romancista gaúcho Jeferson Tenório, no artigo “Se Lima Barreto fosse usuário do Facebook”, exortou os analistas da obra de Lima na FLIP 2017 a não reduzi-lo à sua biografia, posto que a obra é o mais importante, mesmo que a trajetória do autor seja fundamental e nos ajude a compreendê-la. Desse modo, seus livros, Triste fim de Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos, Recordações do escrivão Isaías Caminha, Os Bruzundangas, entre outros, são maiores do que Lima Barreto. E Tenório conclui: “dizer isso parece óbvio, mas em certos casos o óbvio tem de ser dito, principalmente para quem vai falar de um autor negro no Brasil”.

Deu certo. Os augúrios de Tenório, possivelmente escaldado pelas águas geladas e poluídas que costumam lançar na literatura de autoria negra, foram ouvidos. Lima não foi ensimesmado em sua biografia. A obra foi discutida. Mas Tenório ainda palpitou: se convidado, Lima, o homenageado, não compareceria à FLIP.

Edimilson de Almeida Pereira, o maior conhecedor de cultura Banto-mineira de todos os tempos, a quem um jornalista, de maneira precisa, mas lamentável, caracterizou como desconhecido do grande público (a ponto dele, o jornalista, chamá-lo de Andrade – será que foi por ter ouvido ali, na igreja-sede da Flip, ecos de Drummond?) roubou a cena na igreja matriz de Paraty. Reverenciou aqueles que vieram depois dos donos da terra, mesmo deslizando no léxico e chamando-os de “escravos”, não de escravizados, como deveria. Pediu licença a eles, agradeceu por seu legado.

Ainda sobre a troca de nomes, tão comum com escritores negros, vale lembrar que Carolina Maria de Jesus é comumente chamada de Maria Carolina de Jesus por jornalistas e até por estudiosos de literatura.

Edimilson, o mestre-sala, quebrou o protocolo, o paradigma, e colocou uma epistemologia nova para girar. E Dona Diva Guimarães, atenta, sentiu-se inspirada a também nos oferecer o legado sereno de quem domou o ódio e a raiva gerados pelo racismo para continuar estudando, mas acionou-os para sobreviver e levantar a voz na Flip 2017.

Insurgiu-se quando, depois de transformada em celebridade literária, foi indagada por um jornalista sobre o valor de seu salário de professora aposentada. Dona Diva não era boba e sabia que a estratégia da branquitude era transformá-la em protagonista do coitadismo que tanto distrai os brancos. Ela se rebelou, como a criança rebelde que nos contou ter sido, e Conceição Evaristo arrematou: “se vocês disserem que é mimimi ou vitimização eu vou rasgar o jornal”! É isso! Vamos para cima. Rasguemos os jornais que nos desprezam e nos querem como bichos de circo.

Scholastique Mukasonga também foi citada como inspiração de Dona Diva Guimarães. Sua intervenção caracterizou a fala de uma igual, libertadora de outras tantas. Por isso o racismo estrutural (e institucional das festas literárias e de variados lugares de formação de opinião) nos quer ausentes, ou mudas, quando por lá passamos. Porque uma pode inspirar a outra e para resguardar os privilégios da branquitude é mais seguro que nos invisibilizem e nos emudeçam. “Uma sobe e puxa a outra”, como lembrou Ana Maria Gonçalves em alusão ao lema da Marcha de Mulheres Negras Contra o Racismo e Pelo Bem-viver, de 2015.

Mas, o que mesmo significa participar da Flip e de outras vitrines literárias (festas, feiras) de grande cobertura midiática? Significa, acima de tudo, visibilidade para autoras e autores e isso impulsiona a venda de livros, faz circular as ideias, atitudes e formas de trabalho do pessoal em tela; atrai as editoras mais estruturadas e com mais poder de fogo no mercado; expande o campo de pesquisa sobre autores e obras em evidência; aumenta a fortuna crítica; faz com que a crítica e a mídia os olhem com outros olhos ou, no caso das expressões literárias não-canônicas, que pelo menos as vejam em seu lugar de existência.

No limite, se tudo der certo, se tudo confluir para o desejado sucesso, o autor ou autora pode ascender à condição de celebridade literária, passando assim a compor o casting de autores cobiçados, lembrados com assiduidade. E mais bem pagos, afinal, como vocês sabem, em várias feiras e festas literárias é praticada uma hierarquização de cachês de acordo com o nome, trânsito do autor e artilharia da editora.

Por falar em circulação de ideias, uma das entrevistas de Edimilson A. Pereira (A de Almeida, não de Andrade, por favor) problematizando a rigidez do cânone literário, levou o entrevistador a pontificar a necessidade de criação de um cânone extraoficial, um cânone B, presumo, para as autorias não-hegemônicas.

Só que o aprendizado mineiro de quando o adversário vier com o milho, já termos o fubá pronto nos assegura que não interessa um cânone específico para a literatura de autoria negra e outras também massacradas. Essa canoa que já nasce furada teria duas utilidades: geraria trabalho e campo de ação legitimado para estudiosos dessas produções. Esses mesmos pesquisadores tratados como párias por seus colegas estudiosos de “alta literatura”. O segundo uso seria cristalizar num lugarzinho de destaque, certo setor da literatura de autoria negra e afins, mais estabelecido.

Interessa pluralizar o cânone (já que não tenho ilusões de destruí-lo), ou seja, forçar a porta de entrada para que críticos, curadores, gente do mercado editorial, professoras e professores universitários, imprensa, autoras e autores, editoras, agentes negros e afins, do mundo literário, venham a compor o cânone.

Toni Morrison e Alice Walker, por exemplo, só são autoras canônicas porque o cânone estadunidense é diverso e as contempla. Valoriza, também, a autoria de mulheres oriundas de outros grupos raciais e étnicos, de indígenas, de estrangeiros, entre outros conjuntos de autorias tradicionalmente excluídas do cânone literário. É preciso dinamitar (por dentro) o cânone que aí está e construir outro, múltiplo. Não resolve criar um canonezinho de segunda para correr por fora das raias da competição real. Isso só reforça o que já está posto e que nos subordina.

Finda a Flip 2017, fica o desejo de que ela não tenha sido apenas uma resposta às ausências e incongruências da Flip 2016, tal qual a cerimônia do Oscar 2017 em resposta àquela do ano anterior e a criticada lacuna de premiação aos sujeitos negros da sétima arte. A expectativa é que haja mudanças reais e perenes na programação das feiras e festas literárias Brasil afora. Que elas se beneficiem e deixem de temer o belo, aguerrido, corajoso, dolorido, lírico, fecundo, tenaz, vingador, transformador, vigoroso, revitalizador que as autorias negras e outras rejeitadas pelo cânone representam. Oxalá, a literatura “fora dos radares” siga ampliando a multiplicidade e a polifonia da literatura brasileira.

*Esta crônica integra o livro #OHomemAzulDoDeserto

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