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Uma resenha sobre o # Parem de nos matar!



Não somos vítimas do sistema: somos alvos!



Por Raphaella de Souza


Cidinha da Silva. Parem de nos Matar!  Pólen, 2019.
FOTORADIOToda vez que eu leio o título do livro Parem de nos matar!, um nome diferente ecoa na minha mente. Se o livro tivesse parado nas minhas mãos no ano passado, seria o nome de Marielle, em alto e bom tom dentro da minha cabeça. Entretanto, ele veio parar em minhas mãos em 2019, e então, o nome de uma criança preta ecoou junto ao título do livro: Ágatha Félix, 8 anos, morta por um tiro de fuzil, nas costas, desferido pelo braço armado do Estado, no dia 21 de setembro.
Depois de Ágatha, eu, Raphaella de Souza, enquanto moradora da Cidade de Deus, poderia relatar outras mortes nesse pequeno espaço de tempo transcorrido entre setembro e novembro. E é isso o que mais me deixa atônita, depois de ler as crônicas: se fosse um livro “em aberto”, em “construção”, se pudéssemos escrever todo dia um relato sobre nosso genocídio, todo dia teríamos conteúdo para compor a obra, haja vista que a cada 23 minutos morre um jovem negro no Brasil, segundo o Mapa da Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Não é possível dizer quando seria escrito o último capítulo desse livro.
Parem de nos matar! é, sobretudo, a respeito de uma palavra, vou confessar, nova no meu vocabulário: necropolítica. Necropolítica é, resumidamente, a política de morte autorizada pelo Estado. É o que acontece nas favelas desde que elas existem. E a gente sabe que elas existem desde o período pós-escravidão, em que todos os negros foram despejados na falsa liberdade, desamparados por qualquer instituição governamental, situação que continua até os dias atuais. Digamos que pouco mudou – quase nada. A gente sabe também que, por isso, a favela e a pobreza, desde então, têm cor – e é preta. Por tudo isso, damos o nome de genocídio que, em suma, se trata de uma tentativa de extermínio de um povo, a essa necropolítica tão bem retratada no livro de Cidinha da Silva.
O genocídio não começa – tampouco se encerra – pelos tiros de fuzil que encontram seus alvos – corpos pretos –, e isso fica muito escurecido, muito óbvio, ao lermos todo o conjunto de crônicas.
O livro nos mostra, logo na primeira crônica, o serviço análogo à escravidão das pessoas de classe baixa que, durante o carnaval, tentam juntar algum dinheiro ao longo dos dias de folia, e ainda encontram o que Cidinha chama de “coronelzinho pós moderno” impondo normas da prefeitura naquele trabalho massacrante e desumano por si só. Vemos ainda a forma como as domésticas e babás são muitas vezes tratadas, sendo ignoradas enquanto pessoas com nome e história. Nesse sentido, faz-se necessário lembrar que é estratégico, é essência, é a raiz do racismo desumanizar.
Para além da pobreza, do trabalho análogo à escravidão e do tratamento dispensado às babás, discute-se as atitudes racistas para com negras bem-sucedidas como Taís Araujo e Maju Coutinho. Vale destacar aqui que a condição social não libera nenhuma pessoa negra de sofrer racismo: o “defeito de cor” nunca é dispensado, mesmo que a pessoa tenha muita grana e seja excelente em tudo o que faz. Foi exatamente isso o que aconteceu quando Tais Araújo mencionou situações que poderiam ocorrer com seu filho em uma palestra no TEDxSaoPaulo: ela sofreu ataques racistas nas redes sociais simplesmente por dizer a verdade.
Outro ponto a destacar da obra, e mais uma forma do racismo atuar, se não matando ou oprimindo, é o aprisionamento. Não é à toa que a maioria dxs presidiárixs são negrxs; e a cada três pessoas presas, duas são negras, segundo dados do INFOPEN.
Desumanização, ataques racistas, opressão, encarceramento. Chegamos no capítulo que relata a tragédia do racismo na vida de Mirian França, que, injustamente e sem prova alguma, foi presa por assassinato. E chegamos à recomendação supernecessária: a mobilização para além do plano virtual. A necessidade de se movimentar na direção ideal, no caso, a Defensoria Pública. No episódio em questão, muitos órgãos e pessoas foram acionadas, e atentemos para o conselho no capítulo dedicado à farmacêutica negra: “É necessário que pessoas, de um modo geral, ativistas dos movimentos sociais ou não, conheçam quem são os defensores com quem se pode contar nas diferentes cidades e Estados”.
Seguimos nas crônicas desassossegadxs e alarmadxs, lembramos dolorosamente do assassinato de Cláudia da Silva Ferreira. O capítulo que lhe é dedicado é um dos mais curtos, porém um dos mais potentes, a meu ver. Nesse capítulo, eu parei para respirar, lenta e profundamente, porque as palavras “humanidade”, “respeito”, “dignidade”, “cidadania”, “vida”, “direitos”, “sonhos”, “justiça” perderam, realmente, o sentido.
É difícil continuar. A polícia mata. A polícia mata preto todos os dias, e isso não é considerado assassinato, esse é o ponto. Essa é a questão. Atento para o fato de Cidinha trocar a palavra vítima por alvo. Realmente, não somos vítimas do sistema, somos alvos (e por ele somos vitimadxs).
Tantos outros antes de Marielle, depois de Marielle. Como Claudia. Depois de Claudia, Agatha, e muitos outros: Douglas Rafael, Edilson Silva dos Santos (“era só mais um Silva que a estrela não brilha”), Kaíke Augusto, Roberto de Souza Penha, Carlos Eduardo de Souza, Cleiton de Souza, Wilton Esteves, Wesley Castro…
Fundamental ler esse livro em tempos como esse, em 2019, quando a necropolítica se faz mais presente e mais potente. Ano em que o governador desce do helicóptero comemorando a morte de um jovem negro. Ano em que seguimos sem respostas sobre a morte de uma vereadora negra executada a tiros. Ano difícil.
Não sabemos quantxs mais precisarão morrer para que essa guerra acabe, Marielle. Talvez amanhã, talvez eu morra manhã. Nunca se sabe. Mas hoje, só hoje, seguimos de peito aberto e cabeça erguida, mesmo com o alvo na testa ou nas costas, escrevendo, recontando –
…Recontar não deixa esquecer e fazê-lo sem sensacionalismo evidência a desmesurada falta de valor marcada a ferro na existência de alguns seres humanos. Faz lembrar que eles foram humanos um dia. Não permite que sejam soterrados na vala comum dos negros para os quais se naturaliza a morte trágica.
ESSA É A IMPORTÂNCIA DESSE LIVRO.
Obrigada, Cidinha da Silva.

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