Live nossa de cada dia
UMA DECISÃO DE INÍCIO DE ANO CUMPRIDA É A DE FAZER BOAS E POUCAS LIVES. Em 2020 aceitei 95% dos convites recebidos, movida pelo compromisso ético que uma pessoa pública assume na cena pública. Ocorre que muita gente se aproveita disso e te transforma em parte do cenário discursivo da proposta de live.
Por exemplo, passei por certas lives que, além do absurdo de as apresentadoras quererem que eu ficasse esperando o público chegar para começar o trabalho, elas sugeriram por gestos e palavras que eu “fizesse sala” para quem estava lá. O correto é você iniciar a live uns minutos antes do horário marcado, coloca uma música, conversa com quem está chegando, faça o que te der na cabeça, mas chame a convidada no horário combinado e comece.
Usar a gente como parte de um cenário discursivo implica em outras duas coisas: a primeira é galvanizar nossa presença para impulsionar a carreira do apresentador, passei por isso outro dia. O cara queria ter meus livros e já que ele publicou dois livros, ele os enviaria para mim e em troca, eu enviaria duas obras minhas (escolhidas por ele). Não bastasse, seria bom que eu lesse as publicações dele para a gente “dialogar” (em tese, uma conversa sobre o meu trabalho literário). Vocês conseguiram perceber a grandeza do disparate? Ainda tinha a preparação da live, papos prévios por telefone para “a gente se conhecer melhor”. Véi, tenha fé em Deus! O que leva um sujeito a pensar que tenho interesse em conhecê-lo melhor antes de dar uma entrevista? Desnecessário dizer que tratava-se de mais um sujeito branco em processo de desconstrução e que usa das ferramentas que construíram sua branquitude para tentar colocar pessoas negras de prestígio a serviço de seu projetinho de projeção pessoal.
Outro aspecto dos usos e abusos da nossa presença nas lives materializa-se nos convites para impulsionar pautas das apresentadoras. Vivo recebendo esses chamados tortos também.
A situação mais recente se deu com uma professora da universidade que me convidou para falar sobre “literatura de mulheres negras”. Por mais que eu explicasse que não tenho interesse no tema nos 13 e-mails que trocamos (13, minha gente, 13), a professora achou que podíamos “seguir conversando” para definirmos a minha “fala” já que não estávamos chegando a um consenso; já que eu havia dito explicitamente que achei péssima a sugestão de abordagem feita por ela. Preparação de live é trabalho de quem a organiza, eu não tenho nada a ver com isso quando sou convidada.
Em fim de contas, a pessoa que me convidou para falar sobre minha literatura (disfarce para utilizar minha presença e meu pensamento para fortalecer a agenda dela frente aos alunos e à instituição, pois deve tratar-se de uma live doméstica, sem apelo amplo de audiência), nunca leu um livro meu e depois de eu instigá-la sobre essa necessidade, ela me disse que leria “meus artigos”. Fui obrigada a encerrar a conversa da seguinte forma: “A única coisa que me levaria ao seu programa, que justificaria minha presença lá, é meu trabalho literário. Daqueles 19 livros autorais que te falei, 16 são de literatura. A minha literatura é o que interessa e é a partir dela que falo qualquer coisa na cena pública. Leia meus contos, minhas crônicas, meus livros pra crianças e adolescentes. Os ensaios pertencem à história e não me interessa retomá-los. Tem um monte de escritoras negras mais jovens, principalmente ligadas à perspectiva de Cadernos Negros que adorarão participar do formato de live que você propôs e elas têm muitas coisas a dizer, não sei se com o nível de elaboração que você gostaria de ouvir, mas certamente é a perspectiva delas. São realmente muitas e estão por aí nas redes, convide-as. Noutro momento, se você quiser apresentar uma proposta de trabalho remunerado, avalio e te digo se me interessa e, tendo agenda livre, encaixo. Vamos em frente”.
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