“Inácia” | Atlânticos em transe sob a lua de Luanda, por Cidinha da Silva. Ep.5

Ilustração: Okun — Senhora, senhora! Eu corri atrás da zungueira para entregar-lhe um galho seco e sem cheiro que caíra da bacia que carregava na cabeça. Senhora, senhora, por favor. — É comigo, mana? — Sim, senhora. É que caiu esse galho da sua cabeça, digo, dos apetrechos que a senhora carrega na cabeça. — Que susto. Achei que estava perdendo pedaços da cabeça. Não me chame de senhora que sou mais nova do que tu. Eu ainda faço filhos, tenho menos de 40, tu não fazes mais. — Nossa, como é que a senhora, como é que você sabe? — As mulheres daqui ainda sabem das coisas, mana. Vocês desaprenderam. És brasileira, suponho. — Sim, o jeito de falar me denuncia, não é? — Não só, tem a pele, o jeito de andar, o gesto, mas não me olhe com essa cara de surpresa porque te pareço mais instruída do que uma zungueira deveria ser. Fui universitária um dia, é que tenho filhos e preciso alimentá-los. Este galhinho que me entregaste é parte do leite deles. Muito obrigada. Já caminhei uma hora de casa até aqui. Ainda caminho 40 minutos para chegar à praia, preciso ir. Ainda te demoras em Luanda? — Como sabes que estou de passagem? Eu não poderia estar vivendo aqui? — Não, tu ainda não incorporaste os meneios da terra, mas eles estão dentro de ti, é preciso um pouco mais de conformidade com o tempo para que se revelem. — Eu me senti voltando para casa quando pisei no desembarque do aeroporto. Uma sensação de chegar em casa depois de ter estado muito tempo fora. Não sei se me expliquei direito. — Eu te entendi, mana, eu percebi. Tive gente minha arrastada para o Brasil no tempo do tráfico atlântico e mais gente minha se foi agora, buscando uma vida melhor. — Sinto muito, sinto tanto, pelos que se foram antes, sequestrados, e pelos que agora escolhem ir. O Brasil é um país racista, que odeia negros, em especial os africanos e haitianos. Você acha que nós podemos ser parentes? — Somos todos parentes na grande família africana. — Pergunta tola a minha. Desculpe, é a ansiedade por realizar o caminho de volta. — Uma retornada. Te sentes assim? — Sim, é como me sinto. Mas, escuta, quero te dizer algo antes de você ir. Não tive oportunidade de conversar com muitas pessoas, no entanto, me espantou a naturalidade com que você falou sobre os seus que foram arrancados daqui. É um assunto delicado e nunca sei como abordá-lo. — É doloroso, mais do que delicado. As pessoas não gostam de falar sobre isso. Houve famílias que desapareceram, foram totalmente destruídas e os ancestrais ficaram perdidos, vagando, sem ter mais quem os cultuasse e se valesse da orientação deles. É a coisa mais triste do mundo. Nem sei se os meus chegaram ao destino nunca imaginado, podem ter ficado pelo mar. O desconhecimento do paradeiro deles é a segunda grande dor que carregamos. — Eu não sei o que dizer, dói tanto te ouvir. — Nós também não sabemos o que falar, não achamos palavras para traduzir o que sentimos. Agora preciso ir, mas, esteja certa, tu vais voltar para ficar mais tempo, para reencontrar tua alma e recontar nossa história. — Você acha mesmo? — Tenho certeza. Mas não vá embora dessa vez sem conhecer o quintalão. Fica a uma quadra daqui. Você deve isso à sua gente. — Eu já fui. Ouvi os gritos, os gemidos, o desespero. O que havia de mais duro em mim se dissolveu, meus ossos e meus dentes. Minha carne foi quebrada, meus nervos foram rasgados. — Firmaste os pés na terra? — Firmei, bati forte, quase não tinha controle das pernas, mas consegui firmar. — Estou certa de que eles vieram. Eles estão sempre de guarda, só esperam por um chamado. — Sim, os ancestrais vibraram em meu socorro e me acalmei. Não me desviei do encontro aterrador com a nossa História. — Coragem é o nome que a vida nos obrigou a ter. Seja bem-vinda à sua casa, mana. — Obrigada, Inácia. Espero te encontrar na volta

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