Amores e humores - crônica de Cidinha da Silva no jornal Rascunho (site)

Amores e humores Após uma modorrenta partida de futebol, uma carta de amor espana a tristeza e preenche o domingo de beleza CIDINHA DA SILVA SÃO PAULO - SP # CIDINHA DA SILVA, CRÔNICAS, EXCLUSIVO SITE RRascunho Ilustração: Thiago Lucas 19/04/2024
O Galo, que ganhou o campeonato mineiro na semana passada, tentou entrar em campo na disputa do Brasileirão, mas o adversário não deixou; fez um joguinho catimbado e o pentacampeão das alterosas não conseguiu atuar. Aos 25 do primeiro tempo, percebi que aquilo não chegaria a lugar nenhum e desisti de assistir. Desliguei a TV, mas me mantive no sofá. Quando acordei e passeei à deriva pelo celular, dei de cara com um sonho que não sonhei. Uma carta de amor escapava do mar cibernético das tolices exibicionistas. Dizia: “Estar com você é nunca saber o que é princípio, paisagem ou infinito”. Que trem profundo, suspirei. “Parece mesmo que o amor come a gente, como a estrada come a poeira, o tempo devora a velocidade e a janela chora as gotas de chuva no entardecer de antes da decolagem desse voo.” Que trem bonito, senti. Um menino apaixonado escrevia ao sujeito de seu amor: “Sinto por você uma coisa tão forte dentro do meu coração, que tenho até medo de chorar por você, como estou chorando agora, enquanto vejo esses aviões subirem e pousarem no ar, porque a velocidade é uma pausa no espaço das coisas entre nós. Você, nego, é o silêncio das coisas que trago na história do meu corpo…”. Foi a segunda vez que uma carta de amor dos outros me arrebatou assim e se tornou, a carta, coautora de uma crônica. Porque o amor tem dessas coisas, professá-lo, quando a tônica é o encanto, cria metáforas e símiles, impacta outros corações pela beleza do cotidiano, pela profundidade das percepções simples, pela dança do encontro no outro; são a prova de que podemos, nós, viver bons encontros também. Aquela nova carta de amor me abismou no início da noite de outono, espanou o pólen de tristeza que em pouco tempo inflamaria os brônquios.

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