A casa vazia. Crônica de Cidinha da Silva no jornal Rascunho.

Acordar é me saber viva na casa vazia, cambalear de sono até a varanda para assistir ao Sol nascer, iludida de que você surgirá e abraçará minhas costas, como o rastro de fumaça perfumada que ainda ficou nos primeiros dias. Deixei as janelas fechadas pra que o cheiro do teu cachimbo não fugisse pelas frestas. Guardei as cinzas de teu fumo de ervas numa caixinha pra respirar quando tua ausência fosse insuportável. Os dias de pesadelo são os piores. Pesadelo reforça o sentimento de solidão, de desamparo, mas as noites de sonho nem sempre são boas. Sonhar nem sempre é bom, é trabalho no que fica adormecido, escondido, também cansa. Nessa hora triste do mundo, as notícias das ilhas humanas chegam pelas telas, pequenos visores a promover encontros. De ti, nenhuma notícia, seguramente porque as crias não te permitem ser a ilha que gostarias, e gostar delas é uma coisa, gostar de ser mãe é outra. Queria te contar uma novidade: agora sou parceira da nossa cantora predileta. Ela musicou um poema do livro de que você mais gosta, seu livro. Quando recebi o áudio, ouvi a música por umas três horas seguidas, só eu e os fones, em segredo, enquanto trabalhava. Eu não queria que as paredes ouvissem, só faria sentido se pudessem contar pra você. É bonita, um arranjo leve de piano pros meus versos sem rima. Você está rindo, eu sei. Os poemas daquele livro são anteriores à tua chegada, é que a poesia, desde sempre, anunciava tua vinda. Acho que você choraria ao ouvir a música, talvez chore ao ouvir meu amor derramado na voz da nossa cantora, meu poema seu, meu amor-você, Yauaretê-mirim.

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