O chip da desgraça - crônica de Cidinha da Silva no jornal Rascunho

Marina entrou no carro rumo à plataforma de oceanografia para acompanhar o décimo segundo mês de gestação de Jujuba. Reta final para a chegada do bebezinho de quatro toneladas, no qual a equipe procuraria instalar um chip a fim de monitorá-lo, como faziam com a Mãe. A vida marinha andava tensa, já haviam encontrado cocaína, alumínio e outros metais de celulares na corrente sanguínea de tubarões. Todo cuidado era pouco com as baleias e seus filhotes. Numa piscadela entre o sol de verão no rosto e a música ouvida de olhos fechados, Marina teve a sensação de ter visto o motorista enxugando os olhos. Fechou novamente os seus e continuou curtindo o som. Quando o carro chegou ao destino, notou os olhos vermelhos do motorista. Problema todo mundo tinha e ele devia estar remoendo os seus. Ao passar o cartão funcional na entrada da plataforma, notou que a funcionária da recepção estava cabisbaixa, triste mesmo. Marina não tinha uma boa relação com aquela senhora, uma bolsonarista de primeira hora. No auge da pandemia, tiveram uma discussão. Marina tentou argumentar que até por uma questão de apreço à vida, a recepcionista não poderia acompanhar as ideias da turma do gabinete do ódio. Ela teve covid antes da disponibilidade da vacina, poderia ter morrido, pode ter contaminado pessoas que morreram ou sofreram com a precariedade do tratamento disponível, mas a atendente não considerava essas possibilidades. Ficou brava e disse que Marina praticava abuso de poder, tentava coagi-la por tratar-se de uma pessoa humilde, em posição hierárquica inferior e tal e tal. A oceanógrafa engoliu a revolta e a perplexidade e ruminou a eficácia daquela ideologia bovina. Não deu bola para as dores aparentes da colega de trabalho e do motorista de aplicativo, sentia certa culpa por isso, mas precisava focar no final da gestação de Jujuba. Caso o incômodo se mantivesse, levaria o tema para a terapia. Aliás, por indicação terapêutica tentava se desintoxicar das redes sociais, por isso tinha estabelecido horários específicos para consultar a rede de fofocas e intrigas no celular. Os resultados eram bons, conseguia dormir melhor e também diminuiu a aceleração cardíaca diária. Um toquezinho do despertador do aparelho avisou sobre seus cinco minutos de passeio pelas redes. Sorriu porque se percebia cada vez menos ansiosa à espera do lembrete. Descobriu, então, que o apresentador de TV que habitou os domingos de sua infância pobre, morreu. A primeira reação foi consultar o canal de televisão dele buscando uma notícia mais acurada, mas a programação não teve alterações, exibia um desenho animado da época de sua mãe, o Scooby-Doo. Nas visitas-relâmpago aos outros canais foi soterrada pelas reportagens de canonização do recém-falecido. Marina se lembrou de que ele era bolsonarista, sustentador da ditadura de vinte anos iniciada em 1964, que manifestou ao longo de décadas, reiteradas práticas racistas, LGBTfóbicas e machistas com o público que o endeusava. Visualizou ainda o carnê que a mãe pagou durante doze disciplinados meses prospectando a compra de uma panela de pressão e um conjunto de pratos floridos, rasos e fundos, mas fora informada de que o montante acumulado lhe permitiria adquirir um glorioso conjunto de latas para mantimentos, duas grandes para o arroz e o feijão, uma média, para o açúcar e uma pequena, para o café. O destino das latas, frequentemente vazias, seria a oxidação pela maresia. Tanta coisa a passagem de uma personagem que atravessou o cotidiano das pessoas por tantas décadas evoca, principalmente aquelas cujo imaginário ele mirou e disputou pela implementação do chip coletivo da precariedade e do desespero frente a enumeráveis ausências, solucionadas por um sorriso de escárnio e distribuição gratuita de dinheiro e lazer baseado na manipulação da desgraça dos mais achatados e explorados, feita por um homem poderoso de origem modesta, esbanjador de humor mórbido. Findos os cinco minutos, Marina retomou o monitoramento de Jujuba, mas no restante do dia de trabalho, arrepiou-se ao recordar do pavor que sentia pelas soluções mirabolantes que o pai, abatido pelo desemprego, o desencanto e a dependência do álcool, propunha para a situação financeira caótica da família. Enquanto a mãe se matava de trabalhar para que ela e as irmãs estudassem, o pai sugeria que a esposa usasse sua cara famélica e cansaço milenar, para impressionar os selecionadores de pessoas na fila imensa do programa dominical para conseguir uma vaga na plateia, estender os braços e gritar bastante para ver se uma cédula jogada aos porcos pelo apresentador chegava às suas mãos. Lembrou-se também de duas músicas, a que ouvia na TV e a outra que o pai aprendera na escola e ensinou às filhas: “Chegou a hora de alegria, vamos sorrir e cantar/ do mundo não se leva nada/ vamos sorrir e cantar/ este é um país que vai pra frente/ ôoooo/ de uma gente amiga e tão contente/ ôoooo/ é um país que canta, trabalha e se agiganta/ é o Brasil do nosso amor”…

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