Os negros nos protestos democráticos
Por Cidinha da Silva
Um grupo bastante significativo de negros esteve alheio às manifestações pró-estado democrático de direito. São pessoas politizadas e coerentes que se fizeram notar pela ausência.
Para elas, o mote “não vai ter golpe” não ecoa, não faz sentido. Afinal, na periferia, na quebrada, na favela, “tem golpe todo dia”.
Tem até premiação indireta para policiais pelo número de jovens negros abatidos em nome do combate à violência, da prevenção ao crime organizado, do tráfico de drogas e em “legítima defesa” da PM.
Essas pessoas negras, por sua vez, em legítima defesa, de fato, denunciam que o caveirão não posa para selfie onde o grosso da população negra mora, como faz com o pessoal da Paulista em dia de micareta. Na favela o caveirão arrepia!
O lema da Rondesp, a polícia que executou 13 rapazes negros na chacina do Cabula, Bahia, em 2015, é jocoso e objetivo: “faca na caveira, Rondesp desce a madeira”.
Além de Cláudia Ferreira, arrastada pela PM do Rio há dois anos, a violência letal contra as mulheres negras aumenta a cada ano, como atesta o Mapa da Violência.
A impunidade tem eliminado qualquer esperança de transformação.
A impunidade tem eliminado qualquer esperança de transformação.
Em legítima defesa esse grupo de negros não vai às manifestações em favor da democracia e grita contra o silêncio generalizado sobre as chacinas diárias que reduzem o exército de jovens negros periféricos. Escancara também o holocausto do sistema prisional brasileiro.
Atira flecha certeira na política imperialista do Brasil sobre Angola e Moçambique e na exploração multinacional das empresas às riquezas do continente africano.
Questiona o suporte à ocupação militar no Haiti e a cumplicidade do governo federal com a Marinha do Brasil na ocupação de terras quilombolas, especialmente do Quilombo Rio dos Macacos, na Bahia.
Entretanto, em contraposição aos negros que de maneira crítica não participam dos protestos democráticos, existe um grupo maior de pessoas negras que atua fortemente na convocação e na realização das manifestações em favor da garantia e ampliação do estado democrático de direito.
Não são melhores, nem piores do que o grupo anterior. Apenas fazem uma leitura diferente deles quanto às estratégias possíveis de enfrentamento ao racismo e ao genocídio da população negra.
Um grupo que, como Gonzaguinha, acredita na rapaziada, na moçada, “que segue em frente e segura o rojão”. Que põe fé na fé da moçada que não foge da raia e enfrenta o leão. Que vai à luta com essa juventude (a meninada da ocupação das escolas públicas de São Paulo e de Goiânia) que não foge da raia a troco de nada. Que luta como uma menina. Que luta nesse tempo para transformá-lo.
Em São Paulo, esse grupo de negros deu o tom da diversidade cantada por Chico César. Em cidades negras como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife, Rio Branco, João Pessoa da Paraíba, estado onde proporcionalmente se mata mais jovens negros no Brasil, além de Sampa, a cidade de maior número absoluto de negros no país, esse grupo enegreceu os protestos democráticos.
Em Brasília, Fortaleza, Maceió, Curitiba, Vitória, Porto Alegre, Belém, os negros também saíram de casa para gritar a favor da democracia, do respeito aos direitos humanos, às liberdades conquistadas no combate à ditadura. Contra o racismo, o sexismo, a violência de gênero, o classismo.
Essas pessoas negras acreditam ter à frente o desafio de construir uma ideia de desenvolvimento capaz de contemplar as diversas identidades raciais e étnicas como parte das soluções que o país necessita. Buscam a institucionalização de uma política de promoção da igualdade racial alicerçada em arranjos que envolvam os três poderes da República e diversos agentes sociais.
O grupo de negros que esteve nas manifestações pela garantia da democracia acredita nessas possibilidades de diálogo com o Estado. Acredita na política que se faz pela negociação.
Em Salvador, por exemplo, a manifestação do Campo Grande, centro da cidade, mobilizou milhares de pessoas negras como só se vê na “pipoca” dos blocos carnavalescos de apelo popular.
A favela desceu. O povo de terreiro, capoeiristas, estudantes negros cotistas. As encrespadas e turbantadas. As organizações negras clássicas, os militantes da velha guarda e os coletivos de arte e cultura.
Os braços negros dos partidos políticos de esquerda levantaram suas bandeiras e trouxeram seus raros parlamentares. As mulheres e a comunidade LGBT negra marcaram presença.
O recôncavo da Bahia veio e até o Ilê Ayê, sem tradição conhecida de esquerda, tocou seus tambores.
A avenida Sete de Setembro e a Praça Castro Alves lembravam a “pipoca” de Igor Kanário. Compacta. Aguerrida. Sobrevivente. Negra e suburbana.
O morro desceu e não era carnaval. Foi um ensaio geral pela democracia.
Vestindo o branco de Oxalá, dono do dia, a esperança mostrou sua cara preta.
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