Deu no Globo
Uma pantera afro-zen caminha entre nós
por Cidinha da Silva
Das vezes que Angela Davis esteve no Brasil, consegui acompanha-la em três: São Luís (MA), Brasília (DF) e Cachoeira (BA). Esta rendeu uma crônica sobre os encontros, “A cadeira de Miss Davis”, na qual contei também um episódio emblemático da humanidade da Pantera. Um grupo de mulheres negras socializava na calçada de um bar e Angela chegou. A cadeira vazia que lhe tocou para sentar estava numa região mais alta do passeio público, levando Angela, que já é muito alta, a ficar numa posição mais elevada que todas mulheres da mesa. Ela não sossegou até mudar de lugar e ficar do mesmo tamanho das demais.
Na passagem por São Paulo, neste 2019, recebi três convites para integrar a claque de Angela; aceitei um deles, mas em fim de contas, não consegui ir. Foi depois de ouvir a transmissão de evento para 15 mil pessoas no Espaço Ibirapuera, que entendi meu pouco empenho para vê-la, é que me incomodou a transformação de uma honorável e coerente militante comunista em pop star, um produto a ser consumido pelas classes médias. A pergunta da jornalista Bianca Santana, uma das mediadoras da conversa, acendeu o estopim do entendimento: “Onde vocês estavam quando nos manifestamos na Av. Paulista (éramos menos de cem pessoas) em desagravo à morte da menina Ágatha Félix, no Complexo do Alemão? Onde vocês estavam durante todas as manifestações que fizemos contra o encarceramento de Rafael Braga e de milhares de outros jovens negros, presos sem provas e sem acesso a julgamento justo?”
Angela foi à casa de Preta Ferreira, recentemente libertada da prisão que criminaliza os movimentos sociais e perguntou: “O que posso fazer para ajudar?” Em outro momento, externou seu desconforto em ser considerada ícone do feminismo negro no Brasil, país natal de Lélia Gonzales, aquela que já formulou sobre a interseccionalidade das opressões nos anos 1970 e 1980, antes do termo existir, com quem temos tanto a prender.
O arqueiro zen e o caçador Oxóssi mantêm conexão silenciosa com o coração enquanto agem. São econômicos e precisos nos gestos, fazem o que precisa ser feito, dizem apenas o que precisa ser dito.
Este ano estive na casa de Angela Davis, na Califórnia, eu e um bando de outras mortais. Eu fazia residência literária na UC Berkeley e me convidaram para estar numa reunião com Anielle Franco sobre o Instituto Marielle Franco. O encontro aconteceria num espaço institucional qualquer, houve um problema e não puderam nos receber, então Gina Dent, companheira de Angela, ofereceu a casa delas para abrigar a reunião. Simples, assim. Para matar a curiosidade de vocês, conto que aquilo que pudemos ver da casa foi algo muito bonito, arejado e confortável, nada parecido com a simplicidade da casa saqueada do presidente deposto da Bolívia, Evo Morales, mas longe também de qualquer luxo ou ostentação.
Entendemos o recado, Angela. Vamos em frente, podemos seguir suas pegadas com luz própria, sem a afetação dos holofotes que cegam.
Cidinha da Silva é autora de Um Exu em Nova York (contos), premiado pela Biblioteca Nacional em 2019.
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