Carta de Cidinha da Silva para Carolina Maria de Jesus, veja o vídeo no link


Querida Carolina,

Desejo-lhe saúde, alegria e paz para escrever em um lugar bonito e tranquilo, sem ninguém para roubar seu tempo e sua atenção.

Hoje, dia 03 de junho de 2020, ultrapassamos 600 mil infectados numa guerra chamada morte aos pretos, aos indígenas, aos quilombolas, aos pobres, ao povo sem-teto, aos catadores, aos idosos, aos sexual-dissidentes, aos trabalhadores de baixa renda, a todas as pessoas vulneráveis e indesejáveis. Temos sido vitimadas por um vírus chamado Covid-19 que virou o país de cabeça para baixo. As expectativas mais pessimistas falavam em 26 mil mortes, já ultrapassamos 30 mil. Um vírus que atinge violentamente o sistema respiratório da pessoa doente, embora o presidente do desgoverno a que estamos submetidas assegure que se trata de uma gripezinha. A Ciência mostra que estamos diante de uma espécie de pneumonia severa, com alto grau de letalidade. É uma volta ao período das trevas, a Ciência e o conhecimento acumulado foram transformados em seres pestilentos e são apedrejados.

O mais terrível, Carolina, é que essas mortes poderiam ser evitadas se os governantes se preocupassem com os mais fracos, como você gostava de dizer; se fossem adotadas medidas que buscassem salvar as pessoas, não a economia. O cheiro da morte infesta tudo e coloca o Brasil no centro do noticiário internacional.

Em São Paulo, cidade que você conhece tão bem, o prefeito anunciou medidas para lidar com a avalanche de mortes previsíveis e evitáveis: comprou quinze mil sacos reforçados para o transporte de corpos; oito câmaras frigoríficas com capacidade para guardar até mil corpos por vez enquanto aguardam o sepultamento; trinta e oito mil novas urnas funerárias e abertura de treze mil novas valas com o apoio de quatro mini retroescavadeiras. Consegue imaginar, Carolina?

A medida mais eficaz pra evitar a disseminação do vírus é um negócio chamado isolamento social, as pessoas precisam ficar em casa e o comércio, parques, indústria, precisam ficar fechados, não podem acontecer grandes eventos com aglomeração de pessoas. Tem gente que pode, mas não quer ficar em casa. Tem gente que não tem casa. Tem gente que tem casa minúscula, não tem segurança alimentar, água corrente e limpa, eletricidade, internet, salário a receber no final do mês, alguma reserva financeira ou fonte de renda mantida durante a quarentena. Essas pessoas se perguntam: O que vamos comer hoje? Terei comida para mim e para os meus amanhã? Quantas refeições conseguiremos fazer até o fim da semana? Perguntas que você conhece tão bem, não é Carolina?

Posso imaginar sua carinha serena ao ouvir essas notícias, nada disso te espanta, não é? Iniquidade é sobrenome da vida que você viveu e testemunhou. Pois te conto que aqui estamos assustadas, apavoradas. Mataram um menino chamado João Pedro, dentro de casa, pelas costas, com as mãos levantadas. Rendido dentro de casa. Contaram mais de 70 tiros dentro da casa dele. Antes tinham matado a menina Ágatha Félix, de 8 anos, dentro do transporte público enquanto ia para a escola, acompanhada da mãe. Na favela hoje, Carolina, você morre pelo vírus, pelos tiros da polícia ou pela falta de leito e respiradores nos hospitais.

Nossa gente resiste, bravamente. O pessoal nas favelas, por conta própria, montou escritórios de gerenciamento da crise sanitária e tomam todas as medidas necessárias para manter as pessoas vivas, em casa, e para evitar que o vírus se espalhe. Também cuidam de doentes e idosos como o Estado ausente não faz.

Lamento dizer que as coisas pioraram em relação ao seu tempo, Carolina. Nossa gente está como sempre esteve, por sua própria conta.

Despeço-me com um abraço afetuoso e te digo que seguimos na sua batida e também do Lima, nós por nós.

Comentários

Postagens mais visitadas