Crônica inédita publicada no Suplemento Pernambuco
A rua, um espaço de liberdade antes da pandemia de covid-19, tornou-se lugar habitado pelo medo. Medo das pessoas que andam sem máscara e respingam saliva umas nas outras ao conversar de rosto colado; medo das pequenas aglomerações de três, quatro pessoas. Pessoas normais que querem voltar ao normal da convivência humana como se pandemia não tivesse havido.
As ruas nos sujeitam à novidade do normal conhecido por muitos que agora emerge dos esgotos e causa espanto a todos. Ratos e baratas cascudas manifestam-se nas ruas para que os hospitais não atendam aos doentes; perseguem, ameaçam e espancam os profissionais de saúde que tratam desses doentes; invadem os hospitais para mostrar que a situação não é tão grave como os milhares de mortos atestam.
As ruas perderam a alegria da circulação descontraída das pessoas, dos ajuntamentos festivos, da paquera, e os que insistem no velho normal flertam com a morte, mesmo aqueles que vão para as manifestações pelo direito à vida. Trata-se de aglomeração, tudo o que não se pode experimentar nesse momento.
Quando saio uma vez a cada dez dias para ir à feira (às 6h30 da manhã) e aos Correios, a vontade é de me largar ao sol, com a leveza, a destreza e a despreocupação de um calango. Só isso, quentar sol na rua como o amigo Aleixo faz no terreiro de sua casa. Mesmo tendo sol na varanda do apartamento, isso não substitui o sol que anda atrás da gente por todos os cantos, que está em todos os lugares abertos. Nesses momentos, compreendo quem está nas ruas querendo viver normalmente e me apresso na volta para casa, para não ceder à tentação.
Quando saio uma vez a cada dez dias para ir à feira (às 6h30 da manhã) e aos Correios, a vontade é de me largar ao sol, com a leveza, a destreza e a despreocupação de um calango. Só isso, quentar sol na rua como o amigo Aleixo faz no terreiro de sua casa. Mesmo tendo sol na varanda do apartamento, isso não substitui o sol que anda atrás da gente por todos os cantos, que está em todos os lugares abertos. Nesses momentos, compreendo quem está nas ruas querendo viver normalmente e me apresso na volta para casa, para não ceder à tentação.
As ruas, mais do nunca, tornaram-se espaços masculinos, e esses homens que agem como se tudo estivesse normal contaminam as mulheres em casa. O Homem-Aranha na agência dos Correios é um bom exemplo. Para espirrar ele puxa a máscara e disfarça a mão na boca. Para bocejar, idem, a máscara lhe incomoda; para falar, também. Deve sentir-se incomodado pelas teias do desenho e sua liberdade de existir, que máscara alguma (cuidado com os outros) irá conter.
Crianças e idosos nas ruas aceleram meu coração. Há doenças novas associadas ao Covid-19 que têm acometido aos infantes em contato com o vírus. E os senhores (vejo poucas senhoras), bravos e destemidos, colocam suas máscaras no pescoço, no queixo ou na testa e batem papo, animados. São homens e parecem querer dizer que já enfrentaram tantas coisas na vida, uma “gripezinha” não os inibirá. Procuro passar longe deles, ando em zigue-zague pelas ruas, fujo das pessoas, não quero conversar, não quero ficar perto, quero distância de toda a gente. É o que vejo no meu bairro de classe média e confesso que não existe possibilidade de me deslocar às ruas das periferias da maior cidade da América Latina, das quais crianças e velhos nunca saíram e as demais pessoas também não.
A verdade é que as ruas me apavoram, mesmo da varanda. Felizmente, não as vejo, e pela primeira vez acho bom só enxergar janelas, telhados e a copa de uma única palmeira, impávida.
Eu despacho a rua todas as vezes que saio de casa. Comunico a Iku que não vou agora, que ele desista de mim porque ainda tenho muita coisa a fazer por aqui. Converso com Iku já que não existe conversa com os que querem nos matar, com os que nos consideram vidas descartáveis. Faço acordos com os donos das encruzilhadas e das ruas diante dos olhos assustados dos porteiros evangélicos, da surpresa dos coreanos donos do mercadinho, e do escárnio do taxista racista. Dou ciência a Exu sobre meu desejo de viver e o incumbo de levar a mensagem a quem de direito; a Ogum presto reverência, declaro e demonstro domínio sobre a situação de guerra que nos sufoca (não conseguimos respirar) e nos convoca a lançar mão das tecnologias ancestrais de sobrevivência e produção de infinitos, herdadas dos que vieram antes de nós e nos trouxeram até aqui.
No meio do caos é preciso cultivar a alegria para manter a saúde mental, ensinam os afoxés e o congado que saúdam as ruas e as limpam para que vivamos em paz e nos chegue a fartura, muitas vezes ausente de nossa mesa. Alegria, agora, a ser vivida dentro de casa, porque para nós, gente negra, não haverá vaga em hospital, e se houver, não haverá respirador, isso, se chegarmos vivas ao hospital, se os ratos e baratas cascudas não quebrarem a ambulância no meio do caminho.
A grande lição da pandemia de covid-19 vem dos becos e vielas, as ruas típicas das favelas. Estamos por nossa própria conta, nós por nós é mantra e é atitude de combate. Nós, gente negra, só nos salvaremos da morte se cuidarmos de nós mesmos e uns dos outros, se nos responsabilizarmos pelos nossos que mais precisam. É isso que grupos de jovens, lideranças comunitárias, grupos artísticos e organizações como a Cufa (Central Única das Favelas), têm feito diante da ausência do Estado e de políticas públicas, cuidam de nossa gente, zelam por nossa saúde e pela preservação da vida. Asé para quem luta e enfrenta a morte, de pé.
http://suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/85-cronica/2508-becos,-vielas,-afox%C3%A9-e-congado.html?fbclid=IwAR35RkeEZvNG2JdHW1Tt4DOLI9G0_K35ut8J-NvPz0KMLz4zoO5wKLj0hAY
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