Quatro perguntas e respostas sobre a reivindicação de norma culta para as publicações de Carolina Maria de Jesus
FONTE: Cidinha Da Silva, do Medium
10/09/2021
Respondi a quatro questões do jornal Rascunho nas quais discuto decisões técnicas e políticas tomadas pelo Conselho Editorial Carolina Maria de Jesus, no sentido de manter a grafia original de Carolina Maria de Jesus, desafiadas por um debate cujo teor racial é obliterado pela cortina de fumaça da adequação da linguagem de Carolina à norma culta.
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1 — Nas novas edições de Casa de alvenaria, de Carolina Maria de Jesus, a Companhia das Letras, junto com um conselho editorial formado especialmente para ajudar na publicação dos livros da autora, decidiu manter a grafia da escrita original de Carolina.. Isso tem gerado muito debate. Essa é a melhor maneira de preservar o legado da escritora?
Eu confio nas decisões técnicas e políticas tomadas pelo Conselho Editorial Carolina Maria de Jesus, composto por profissionais competentes, experientes, profundas conhecedoras de Carolina, afinadas com a história de vida da escritora. Além disso, todo o trabalho é supervisionado por Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina e zeladora de seu legado. Penso que quem não consegue atravessar a falta de norma culta para chegar à beleza, densidade, singularidade, complexidade e aos paradoxos da literatura de Carolina de Jesus no afã de construir um lugar de existência para si mesma, não deveria pesquisa-la. Carolina de Jesus apresenta camadas justapostas no espaço da página de cadernos encontrados no lixo. Uma página que podia conter gordura de restos de comida, suor do corpo-trabalhador de Carolina, cheiro de dejetos que se imiscuem no lixo, tudo isso grafado num texto errático forjado no processo alquímico de diálogo de dois anos de escolaridade formal, inventividade e determinação sem limites.
Em países que tivessem uma comunidade negra forte, dessas capazes de colocar em risco a carreira de pessoas brancas quando elas flertam com o racismo (que é estrutural, não está especificamente em indivíduos), elas pensariam duas, três, dez vezes antes de tentar desqualificar as decisões de um Conselho Negro, mas, em países como o nosso, as pessoas brancas fazem isso sem trocar de roupa, na cara dura, porque estão certas de que serão protegidas pelas estruturas racistas e pela política do “sabe com quem você está falando” ? Porque no Brasil as pessoas negras ora lutam para provar que o racismo existe e para demonstrar sua operacionalidade, ora estão envolvidas em educar pessoas brancas “aliadas” que exigem de nós brandura, leveza e cafunés explicativos. Enquanto isso, essas mesmas pessoas brancas permanecem como donas dos espaços de poder e concedem às negras pequenas frestas de participação, de acordo com a conveniência branca. Trata-se de um debate RACIAL, por suposto, muito mais do que um mero debate técnico no campo da teoria literária ou da linguística.
Caso houvesse na composição do Conselho gente dos clubes brancos que dirigem as universidades brasileiras, gente branca que estuda Carolina e é respaldada pelos confrades, tenho dúvidas de que o procedimento técnico escolhido seria questionado, ou talvez, o procedimento não seria o de manter a integralidade dos textos, haja vista que os interesses seriam outros. Parece-me haver aí ressentimentos camuflados, egos feridos, “poxa, sempre fomos donos e donas de Carolina, como é que nos deixam de fora da grande festa, agora que ela está sendo publicada por um conglomerado editorial? Não podiam ter feito isso conosco, vamos espernear. Esse Conselho precisa ser democratizado, não falam tanto em pluralidade? Pluralidade vale só para as mulheres negras? E nós, pesquisadoras brancas de quatro costados? Nós, brancas, especialistas em escritoras negras, também merecemos espaço. É racismo reverso esse negócio de ter apenas mulheres negras decidindo sobre o destino da obra de Carolina, sim, porque a branca que lá está é uma traidora, não joga do nosso lado. Estava tudo muito bem enquanto mantínhamos Carolina como a escritora favelada e afinal, a tradição redentora isabeliana é nossa. Isso de dar protagonismo a Carolina fere o nosso direito de manipulá-la, conquistado em décadas árduas de estudos e descrédito na própria universidade, dado o objeto de estudos sem prestígio acadêmico. Quando ela (Carolina) não era nada, a gente servia, agora que ela virou gente grande, querem nos deixar de fora da festa”.
A meu sentir, senhoras e senhores, uma disputa racial é o que está em jogo, disfarçada por suposta crítica técnica no campo da teoria literária e da linguística.
2 — Pessoas que criticam a decisão de manter a grafia original — que em vários trechos apresenta um descompasso com o português escrito hoje — dizem que esse tipo de decisão mais denigre do que ajuda no legado da obra de Carolina. O que pensa sobre isso?
Eu não utilizo o verbo “denegrir”, não faz parte do meu léxico, primeira coisa.
Em segundo lugar, o enunciado desta pergunta deveria começar por “Pessoas brancas que criticam a decisão de manter a grafia original”… Observem que no debate, só pessoas brancas se dizem tocadas pela novidade (branca) do questionamento sobre a não adoção da norma culta para “corrigir” o texto de Carolina. Duas ou três mulheres negras da área de Letras, de maneira heroica se decidiram a ir até o campo de manifestações brancas estabelecer um contraponto, me parece que também pretendem educar pessoas brancas que dizem “olha, com você até dá para conversar, você não é [uma negra] agressiva”. Eu, daqui da minha toca pandêmica, penso que o lado negro da história deva se fazer cavalo da fúria da lava de Xangô.
Em terceiro lugar, a obra de Carolina de Jesus não precisa de ajuda, ela precisa ser disponibilizada ao público via meios amplos de circulação para ser lida. O Conselho Editorial Carolina Maria de Jesus adotou um formato de disponibilização e ela será feita obedecendo a esse formato, definido por um conjunto de profissionais negras. Aí reside o nó da questão. São mulheres negras decidindo os destinos da obra de Carolina de Jesus, dialogando com a recepção que costuma ser mediada (senão controlada) por quem edita, por quem produz fortuna crítica, por quem vende, em fim de contas, pelos agentes do mercado editorial e livreiro responsáveis pela promoção das obras.
Carolina Maria de Jesus é um clássico da literatura brasileira, o que significa dizer que as pessoas merecem lê-la, conhecê-la e avaliar sua obra como ela a escreveu. Assim fazemos com os clássicos sem esquecer de situa-los historicamente. A história de Carolina impregna suas ferramentas de manejo da língua portuguesa, O Conselho decidiu não higieniza-la, esvaziá-la, determinou-se a apresenta-la da maneira mais integral possível. Uma apresentação para leitores e leitoras, não voltada apenas para especialistas, como uma reivindicação que li no debate.
3 – Outro argumento é de que qualquer escritor, seja negro ou branco, tem seu texto editado (corrigido, modificado, etc.) quando vai lançar um livro. Essa edição seria normal…
Trata-se de um argumento relativamente aceitável, mas questionável. São conhecidos os casos de Saramago, dos irmãos Campos, James Joyce, Lobo Antunes, convictos da manutenção de sua escrita exatamente como a compuseram. A vontade desses escritores não se questiona.
Alguém pode retrucar dizendo, “mas quem garante que essa fosse a vontade de Carolina, que ela não gostaria de escrever certo?” E minha tréplica seria: “Quem tem mais legitimidade do que o Conselho Editorial Carolina Maria de Jesus para se aproximar da vontade hipotética de Carolina”? Veja que enfatizei a legitimidade de mulheres negras cuja origem socioeconômica e, acima de tudo, a pertença racial à população negra alvo do racismo no Brasil, a trajetória existencial e de luta dessas mulheres as irmana a Carolina. Além disso, a filha caçula, Vera Eunice de Jesus, testemunha ocular da luta da mãe, é supervisora, consultora, conselheira do Conselho. Contudo, essa legitimidade negra é facilmente colocada por terra por qualquer pessoa branca, comprometida e respaldada pelos procedimentos ilibados e assépticos da norma culta da língua portuguesa.
Um outro aspecto importante é que esse Conselho, além da legitimidade, exigida no trato de um sujeito como Carolina de Jesus, diuturnamente manipulada pela branquitude acadêmica, tem as competências técnicas necessárias para decidir por um determinado procedimento técnico-político que foi o de manter-se fiel ao texto original da autora, na perspectiva de resguardar a integralidade de sua pulsação para escrever, de seu pensamento errático face às demandas básicas de subsistência, de sua presença no texto, do ritmo da luta pela sobrevivência determinante nessa pulsação e nessa presença. Uma decisão política e técnica de apresentar de maneira integral a obra de alguém que sempre foi esquartejada por interesses diversos, espúrios, muitas vezes. Um Conselho composto por profissionais negras tituladas pelas melhores universidades tomou esta decisão, mas são negras, não é? Sempre o serão e a branquitude julga ser muito fácil e simples destituí-las de suas competências, de seus títulos, credibilidade e saberes.
4 — No texto de abertura da nova edição, Conceição Evaristo e Eunice de Jesus, filha de Carolina, escrevem que jornalista Audálio Dantas, que “descobriu” Carolina, teria forçado a barra para que Carolina escrevesse Casa de alvenaria, como uma espécie de “continuação” do best-seller Quarto de despejo. Para você, o jornalista mais ajudou ou atrapalhou Carolina e sua carreira?
Em primeiríssimo lugar, penso que a carreira de Carolina de Jesus existiu como tal, porque Audálio a inventou, à carreira, não a Carolina que tinha e tem existência própria.
Audálio inventou um produto de mercado para ser consumido pela voracidade branca e racista dos que se regozijavam pela exposição das vísceras de uma mulher negra e seus filhos em situação de miserabilidade. Uma mulher negra escritora e detentora de um projeto literário, de uma escrita prolífica e inventiva que ela mostrou ao jornalista supostamente bonzinho, mas que não despertou interesse de publicação.
Audálio queria os diários, queria o que mais expusesse sofrimento, angústia, fome, dor e desespero. Ele queria vender revistas. Gente negra, afinal, serve para isso, para atrair moscas varejeiras, por meio de sua luta incessante pela sobrevivência e, se for alguém como Carolina de Jesus, que além de sobreviver queria, obstinadamente, produzir um lugar de existência para si mesma, tanto melhor. Isso rende as melhores histórias de superação que, por sua vez, vendem bastante, geram visibilidade e prestígio para quem as “descobre”, as “resgata” e coloca na vitrine narrativa. É algo divertido para os que consomem essas histórias, como os europeus que em visita ao Rio de Janeiro vestem roupa de safari e sobem em jipes para fazer turismo nas favelas cariocas, ou os filhos dos ricos que realizam visitas exploratórias às casas das trabalhadoras domésticas que cuidam deles para entender como elas, as trabalhadoras, vivem, que ecossistema habitam em Paraisópolis e em outras favelas paulistanas.
Carolina e seus diários cabiam como luva no projeto de projeção pessoal do jovem jornalista de esquerda, teoricamente preocupado com a classe trabalhadora num Brasil de movimentos sociais efervescentes, de luta pela terra, de migrações das zonas rurais para as grandes cidades. Um homem que manipulava bem a engrenagem racista que produz ícones negros de superação, os coloca em evidência para praticar todo tipo de extrativismo (intelectual, emocional, cultural, da subjetividade), mói essas pessoas negras e depois que elas não têm mais utilidade, as devolve destruídas e exauridas ao quarto de despejo originário. Por isso, digo há alguns anos, que o racismo foi o principal responsável pela ascensão e queda de Carolina Maria de Jesus.
Cidinha da Silva, escritora. Publicou “Um Exu em Nova York” e “Sobre-viventes!” (ambos pela Pallas) e “# Parem de nos matar! (Jandaíra), entre outros.
A MATÉRIA PUBLICADA PELO JORNAL RASCUNHO PODE SER LIDA AQUI: https://rascunho.com.br/liberado/novas-edicoes-reascendem-polemicas-sobre-carolina-maria-de-jesus/?fbclid=IwAR1rbSpVZkkTSR96Nhk0PYiWAIuc3Vdu_PcGSTyol9AvfL8IhfTBb_Ip8eM
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