Porto de Luanda: o caminho sankofado

“Porto de Luanda: o Caminho Sankofado” | Atlânticos em transe sob a lua de Luanda, por Cidinha da Silva. Ep.2 FOLHETIM | Sesc Pompeia / Ilustração: Okun
O mar vinha até aqui, depois aterraram tudo, cimentaram. A Odebrecht se meteu a construir esses prédios, essa fachada. A Dubai angolana, estás a ver? Até o outro lado da marginal, que ainda não havia, era tudo mar, mas mataram a água. Interromperam o fluxo das ondas, das algas, e a água morreu. Virou esta podridão, uma lixeira. E um mundaréu de gente que não tem uma vivenda corre ali a construir um barraco e logo, logo, temos um musseque, e crianças que morrem de diarreia, febre tifoide, fome, desnutrição. O mar tomava conta dessa marginal, não existia o Fortaleza. Tínhamos o Forte mais para dentro, invadiram o terreno para construir o shopping, como fazem com tudo o que é histórico, cá não tem vez a História, mana. O governo de quando em quando aparece e acaba com o musseque, dispersa o pessoal. Daí a pouco outra massa depauperada se aglomera no charco e constrói as moradas que o destino de viver como ratos lhe impõe. E seguem nessa alternância entre o musseque e as periferias onde não há escolas e não há transporte público. A frequência às escolas mais distantes é dificultada pela necessidade de deslocamento em autocarros, a maior parte da gente não pode pagar. Como resultado, a presença dos estudantes na sala de aula é quase sazonal, e a perda do ano letivo é elevada. Na estação das chuvas tudo piora, e o precário sistema de transportes disponível deixa de funcionar, haja vista a quantidade absurda de lama, a qual os carros velhos e deficitários não têm tração para enfrentar. Além disso, avolumam-se os acidentes no sistema de eletricidade das casas e pessoas morrem em decorrência deles. Água e fios desencapados não combinam, estás a ver? Os dois governos que tomaram conta de tudo no pós-independência prometeram um país à juventude, mas esse país não foi entregue, e o tempo da fartura, ou pelo menos da estabilidade econômica, nunca chegou. Não chega. A guerra e a corrupção ampliaram o fosso entre os ricos muito ricos e os pobres, e entre estes e os miseráveis. Não há solução, e para viver, as pessoas precisam se alimentar, e se conseguem qualquer tipo de trabalho, qualquer um, é a possibilidade de comer que precisa ser agarrada de todos os modos. Moradia em condições desejáveis e adequadas é detalhe, luxo. Eu me pergunto, mana, que diferença há entre esses tempos de agora e aqueles em que éramos capturados e trazidos dos interiores d’Angola e passávamos pela região do aeroporto, e caminhávamos amarrados, enfileirados, seminus pela Rua dos Mercadores, e éramos depositados nos quintalões, acorrentados, feridos e famintos, e aguardávamos por um futuro desconhecido, para o qual embarcaríamos no Porto de Luanda, um caminho sem volta feito por cima das águas. É o que me pergunto todos os dias, quando vejo a miséria se alastrar como mato. E nossos jovens a migrar para, como tu me disseste, minguar no teu país, para definhar na mendicância ou no crack. Se aqui tinham emprego, terra ou automóvel, algum posto familiar herdado da guerra, alguma economia da vida toda, vendem o que têm, endividam-se, prometem pagar depois de estabelecidos no Brasil. E tu me contas como sofrem ao trocar os ganhos certos, mesmo que insuficientes daqui, pela realização de sonhos que derrapam no pesadelo racial que é o Brasil. Como não conseguem integrar os 20% que logram legalizar a situação e pululam nos abrigos à espera de qualquer doação, e enlouquecem, e perambulam pelas ruas das metrópoles, vendem barato a força de trabalho e são mortos porque cobram pagamentos atrasados, como aconteceu àquele congolês, tão moço ainda, que lástima. Que Áfricas somos nós, minha irmã? Onde, nas Áfricas que construímos fora do continente, cabem nossos sonhos de liberdade, nossos infinitos?

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