Professor sulafricano comenta eficácia das ações afirmativas, no Brasil e na África do Sul

(Deu na Folha on line de 01/12/2007, por Paulo de Araújo) Sul-africano defende expansão de ações afirmativas no Brasil "Após o fim do apartheid na África do Sul, há 13 anos, as ações afirmativas implementadas no país foram o principal instrumento no processo de inclusão social dos negros, segundo Shadrack Gutto, professor para estudos africanos da Universidade da África do Sul, entrevistado com exclusividade pela Folha Online em São Paulo. Até então, os brancos --10% da população do país-- detinham 87% das terras, enquanto os negros, que representavam 90% da população, tinham 13% delas. A exclusão repetia-se na política, na educação e na economia. "A situação mudou graças às ações afirmativas colocadas a partir de 1994", afirmou Gutto à Folha Online. Ele esteve no Brasil para participar do "Seminário Internacional de Gestão Pública Compartilhada: Experiências de Ações Afirmativas", organizado pela Prefeitura de São Paulo Ele defende ainda a ampliação do espaço dos negros nas universidades sul-africanas. "Em algumas universidades, os professores brancos ainda são 80% ou 90%. E isso é um problema. Você não pode só ter brancos ensinando negros. É preciso também ter negros ensinando negros". Na entrevista, ele reivindica a ampliação das ações afirmativas no Brasil, tanto na educação quanto em outras áreas. "Ou os negros são excluídos das universidades ou se tornam parte do capital intelectual do país. E o Brasil será pobre se não tiver uma diversidade de cultura no sistema educacional, com brancos, negros e indígenas. Um país precisa disso", afirma ele. Leia abaixo a íntegra da entrevista concedida por Gutto à Folha Online": Folha Online- Como o senhor avalia a eficácia das ações afirmativas na inclusão social dos negros na África do Sul? Shadrack Gutto- A segregação na África do Sul já existia desde a era colonial. Depois, como todos sabem, o país tornou-se o centro de um racismo sistêmico e muito organizado durante o apartheid. Quando esse regime foi derrotado, graças aos esforços da comunidade internacional e do próprio povo sul-africano, foi preciso corrigir os erros históricos. Para isso, as ações afirmativas tiveram um papel imperativo, e já havia uma visão sobre sua eficiência. Em 1993, o partido Congresso Nacional Africano, que hoje governa o país, formulou o Programa de Reconstrução e Desenvolvimento. Quando chegou ao poder, em 1994, por meio das primeiras eleições democráticas, implementou diversas reformas para dar poder aos negros, que estavam excluídos da economia, da política, da educação. Houve então uma série de ações, incluindo reforma agrária, reforma nos serviços públicos e sociais e reforma na área educacional. Folha Online- Como era exatamente a situação dos negros até então? Gutto- Antes de 1994, os brancos, que eram 10% da população, detinham 87% das terras no país. Os negros, que representavam 90% da população, tinham apenas 13% das terras. Ou seja, a reforma agrária era fundamental. Primeiro, era preciso dar aos negros os títulos das terras que já ocupavam. Porque, até então, embora eles estivessem lá, o governo só concedia os títulos aos brancos. O governo também teve que comprar terras para assentar os negros que queriam trabalhar na agricultura. Havia um problema habitacional, porque eles não podiam morar em muitos lugares. Então, a questão habitacional também virou prioridade. Era necessário colocar recursos para que as pessoas pudessem fazer parte da economia e recobrar sua dignidade. Nesse sentido, a reforma agrária foi um dos principais passos. Folha Online- O senhor chama de ações afirmativas esse tipo de reformas? Gutto- Não se pode falar em um sentido estreito. As ações afirmativas são instrumentos para se corrigir os erros históricos, para incluir aqueles que estavam excluídos. As pessoas costumam usar o termo "ações afirmativas". Eu, pessoalmente, prefiro falar em "ações corretivas", porque você está corrigindo esses erros. O que você faz é dar às pessoas o direito de usufruir os direitos que elas já deveriam usufruir normalmente. As ações afirmativas visam construir uma sociedade normal a partir de uma sociedade anormal. São medidas para que as pessoas possam desenvolver todo o seu potencial como seres humanos. Porque no regime do apartheid, as pessoas não desenvolviam seu potencial. Folha Online- O que aconteceu na África do Sul nos últimos anos em termos de inclusão da população negra pode mesmo ser considerado exemplo de sucesso?" Gutto- Houve mudanças muito significativas. Um outro avanço importante, por exemplo, foi na questão dos serviços sociais, como benefícios e pensões para crianças, idosos e desempregados. Os negros não tinham acesso a isso. Era um privilégio dos brancos. Então, o governo teve que assegurar que todos, brancos ou negros, pudessem receber esses benefícios, já que são tão importantes, especialmente para os pobres. Folha Online- E a maioria das pessoas têm de fato acesso a esses benefícios? Gutto- Sim, a maior parte tem. Pode-se dizer que a África do Sul teve um grande sucesso nessa área. A questão da reforma agrária, porém, já é mais difícil, e as medidas ainda não foram suficientes. Ocorre que o governo tem que comprar essas terras, não se trata de expropriação. E fica difícil ter recursos suficientes, porque os preços seguem uma escalada de alta. Quando as pessoas sabem que o governo está interessado nas terras, inflacionam o preço. Por isso, o governo está agora começando a dizer "nós não podemos ficar apenas com as forças do mercado. Vamos tentar negociar preços razoáveis. E se não for possível, vamos expropriar e depois compensar". O governo não pode continuar jogando dinheiro em um buraco sem fundo. Mas é um processo longo. Somos um país democrático há apenas 13 anos. Folha Online- O senhor diria que a África do Sul é muito menos racista hoje do que era há tempos atrás? As ações afirmativas influem também no combate ao racismo? Gutto- O racismo permanece, não mais oficialmente, é claro. Mas para acabar com o racismo você tem que fazer uso sim das ações afirmativas. Porque, uma vez que há desigualdade na educação, nos serviços sociais, na política de emprego etc, o racismo permanecerá. As pessoas podem não te discriminar diretamente. Mas elas discriminam ao te excluir. Então, as ações afirmativas podem ser entendidas como mecanismos para destruir o racismo. Folha Online- Como são trabalhadas as ações afirmativas na área da educação? Gutto- Na África do Sul, havia universidades para brancos e para negros. As brancas ficavam com praticamente todos os recursos. Assim, as pessoas tinham uma educação e potencial desiguais em termos de conhecimento e aplicação desse conhecimento. As universidades para os negros eram apenas para ensino. Não para pesquisa. Hoje, os negros estão se tornando maioria dos estudantes da graduação. Mas os brancos são mais numerosos na área de pesquisa acadêmica. Por isso, em algumas universidades, os professores brancos ainda são 80% ou 90%. E isso é um problema. Você não pode só ter brancos ensinando negros. É preciso também ter negros ensinando negros. Folha Online- Há ações pontuais para incluir os negros no mercado de trabalho? Gutto- Sim. Os negros antes eram excluídos de posições mais altas, ou em área técnicas ou científicas. Uma das ações tem o sentido de fazer com que as empresas tenham um plano de inclusão em todos os níveis, de gerência para cima. Isso vale para negros, mulheres e portadores de deficiência. Mas é preciso mudar a mentalidade dessas empresas. Algumas não implementam os planos. Dizem que precisam de mais três anos, de mais cinco anos, e você não as vê implementando grande coisa. Há também uma lei que exige que as companhias sejam em parte geridas pelos negros. Para eles se tornarem donos também. Porque, se você não for dono do capital, seu papel é apenas o de consumidor. É preciso mudar isso para que os negros não sejam apenas consumidores mas também gestores da economia. Folha Online - A resistência contra essas mudanças é grande? Gutto-Sim. Sempre há grupos que se opõem. Mas não se vence sem luta. Em termos de legislação, há um grande trabalho feito na África do Sul. Mas em termos de implementação -o que depende da cooperação das pessoas-a luta continua. O papel do governo é não só regular, mas também fazer com que as pessoas respeitem as regras. Especialmente se as políticas são boas. Não se trata de afugentar investimentos, por exemplo, e sim de ser mais inclusivo. Sem isso na agenda, o racismo e o sexismo continuam. A luta para mudar, para destruir a mentalidade do apartheid, ainda está em curso. Folha Online- O Brasil adotou o sistema de cotas para propiciar o ingresso dos negros nas universidades. O que o senhor acha disso? Gutto-O Brasil começou a implementar suas ações afirmativas, mas ainda está muito centrado na educação, não foi para outras áreas. Quando estive em Salvador, em 2005, esse assunto veio à tona. E foi mostrado que os estudantes cotistas iam melhor do que aqueles que entraram pelo mérito. Isso deixa claro o quanto a exclusão era artificial, porque essas pessoas podem ir bem. Mas não bastam as cotas em universidade. É preciso tomar medidas para melhorar o grau de educação dos negros desde a escola primária. Para que no final, você não precise mais de cotas. Folha Online- Na época da implementação, havia muita gente contra. Um dos argumentos era o de que as cotas legitimavam o preconceito Gutto- O Brasil tem que tomar uma decisão. Ou os negros são excluídos das universidades ou se tornam parte do capital intelectual do país. E o Brasil será pobre se não tiver uma diversidade de cultura no sistema educacional, com brancos, negros e indígenas. Um país precisa disso. Folha Online-O senhor encara as cotas como uma solução temporária? Gutto- É uma solução temporária, até que os negros tenham as mesmas oportunidades de ir para a universidade e ter sucesso. Estamos falando sobre dar às pessoas algo que elas já teriam conseguido naturalmente, se não tivessem sido vítimas do racismo.

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