"Somos Feias, mas estamos aqui"
(Por: Edwidge Danticatð).
"Uma das primeiras pessoas assassinadas em nosso país foi uma rainha.
Seu nome era Anacaona e ela era uma índia Arawak. Ela era poeta,
dançarina e pintora, também. Ela governava a parte oeste de uma ilha
tão exuberante e verde que os Arawaks a chamavam de Ayiti, terra de
grandeza. Quando os espanhóis chegaram pelo mar à procura de ouro,
Anacaona foi uma de suas primeiras vítimas. Ela foi estuprada e morta
e sua aldeia foi saqueada. A terra de Anacaona é agora frequentemente
chamada de o país mais pobre do hemisfério ocidental, um lugar de
contínua conturbação política. Assim sendo, para alguns, é fácil
esquecer que esta nação foi a primeira república negra, terra dos
primeiros afrodescendentes a extirparem a escravidão e a criarem uma
nação independente, em 1804.
Eu nasci no Haiti durante o regime ditatorial de Duvalier. Quando eu
tinha quatro anos, meus pais deixaram o Haiti à procura de uma vida
melhor nos Estados Unidos. Eu tenho que admitir que a motivação deles
era mais econômica que política, mas como sabem todos que conhecem o
Haiti, economia e política estão intrinsecamente relacionadas; em
geral, quem está no poder é quem determina se as pessoas terão ou não
o que comer.
Eu hoje tenho trinta e quatro anos e já vou vindo mais de dois terços
da minha existência nos Estados Unidos. Minhas memórias mais vivas da
infância no Haiti envolvem apagões repentinos, os "blakawouts", como
dizíamos. Durante os blecautes, eu não tinha como ler, estudar, ou
assistir televisão, então eu me sentava perto de uma vela ou de uma
lamparina e ouvia histórias contadas pelos mais velhos da casa.
Minha avó era uma senhora da roça que sempre se sentiu deslocada na
capital, onde vivíamos. Ela não possuía nada além de suas colchas de
retalhos e suas histórias para se consolar. Foi ela quem me contou
sobre Anacaona. Eu dividia um quarto com ela, e eu estava no quarto
com ela quando ela faleceu. Ela tinha mais de cem anos. Ela morreu com
os olhos arregalados; fui eu quem os fechou. Ainda tenho saudades das
incontáveis histórias que ela nos contava. Entretanto, não foi difícil
aceitar sua morte, porque a morte estava sempre por perto.
Quando menina, eu vivia indo a funerais. Meu tio e tutor era pastor da
igreja Batista e esperava-se que sua família fosse a todos os funerais
que ele presidisse. Eu fui a todos os funerais com o mesmo vestido de
laço branco. Acho que é por ter ido a tantos funerais que eu tenho um
forte sentimento de que a morte não é o fim, e que as pessoas que
colocamos debaixo da terra estão indo embora viver em algum outro
lugar. Mas ao mesmo tempo eu acredito que elas estarão sempre por
perto nos protegendo e nos guiando em nossa jornada.
Quando eu tinha oito anos, o cunhado do meu tio passou uma longa
temporada trabalhando nos canaviais da Republica Dominicana. Ele
voltou mortalmente adoentado. Lembro-me de sua esposa girando penas
por dentro de suas narinas e esfregando pimenta do reino na parte
superior de seus lábios para fazê-lo espirrar. Ela acreditava piamente
que se ele espirrasse, ele sobreviveria. À noite, eu era eu a
encarregada de observar o céu acima da casa em busca de vestígios de
estrelas cadentes. Diz a sabedora haitiana rural que quando vemos uma
estrela cadente é porque alguém vai morrer. Uma estrela caiu do céu e
ele morreu.
Lembro-me de na infância ver Jean-Claude "Baby Doc" Duvalier e sua
esposa, Michèle, passarem de Mercedes-Benz atirando dinheiro pela
janela para as crianças paupérrimas de nosso bairro. As crianças quase
se matavam tentado pegar uma moeda ou ver Baby Doc e Michèle. Em um
Natal, deu no rádio que a Primeira Dama distribuiria brinquedos de
graça no palácio. Meus primos e eu fomos para o palácio e fomos quase
esmagados na multidão de crianças que inundou os jardins do palácio.
Essas histórias e memórias reavivam umas questões que não me saem da
cabeça. Qual é o meu lugar agora nisso tudo? Qual era o lugar de minha
avó? Qual é o legado das filhas de Anacaona, das filhas do Haiti?
Ao assistir aos telejornais, é sempre difícil dizer se existem
mulheres reais vivas e respirando em lugares detonadas por conflitos
como o Haiti. Os telejornais da noite só nos fornecem notícias breves
sobre golpes presidenciais, imigrantes rejeitados, e sabotagens em
eleições. As histórias das mulheres nunca conseguem chegar às
primeiras páginas. Mas elas existem, sim.
Ao longo dos anos, eu conheci mulheres que, quando os soldados
chegavam em suas casas no Haiti, diziam aos filhos para ficarem
deitados paralisados e se fazerem de mortos. Eu conheci uma mulher
cuja irmã grávida foi baleada no estômago porque estava vestindo uma
camiseta com uma "imagem antimilitar". Eu conheço uma mãe que foi
presa e espancada por trabalhar com um grupo pró-democracia. O corpo
dela é marcado pelas cicatrizes deixadas pelos cigarros enterrados
pelos soldados em sua carne. À noite, essa mulher ainda sente o cheiro
das cinzas das guimbas de cigarros que eram enfiadas, acesas, em suas
narinas. Na mesma cela, essa mulher viu adidos paramilitares
estuprarem sua filha de quatorze anos sob a mira de uma arma. Quando
mãe e filha entraram em uma pequena embarcação rumo aos Estados
Unidos, a mãe nem desconfiava que a filha estava grávida. Muito menos
sabia que sua criança tinha sido infectada pelo vírus HIV contraído de
um dos paramilitares que a estupraram. O fruto desse estupro, sua
neta, recebeu o nome de Anacaona, como a rainha Arawak, porque essa
família de mulheres é de Léogane, a mesma região em que Anacaona foi
assassinada, a mesma região em que minha avó nasceu.
A pequena Anacaona possui um rosto que não traz mais qualquer traço de
sangue indígena, mas sua história ecoa alguns dos primeiros
sanguinários incidentes em uma terra que os tem assistido excessivamente.
Tem um ditado haitiano que talvez não agrade à sensibilidade estética
de algumas mulheres. /Nou lèd, nou la/, que quer dizer /Somos feias,
mas estamos aqui/. Assim como a modéstia característica da cultura
rural haitiana, esse ditado é mais caro às mulheres pobres haitianas
do que a manutenção da beleza, seja ela superficial ou não. Para
mulheres como minha avó, o que vale à pena ser celebrado é o fato de
que estamos aqui, que apesar de todas as adversidades, nós existimos.
Para mulheres como minha avó, que cumprimentavam umas às outras com
este ditado quando se cruzavam ao longo de um caminho de terra lá na
roça, a essência da vida está na sobrevivência. É sempre bom lembrar
às nossas irmãs que sobrevivemos a mais um dia para atender ao chamado
de uma vida muitas vezes dolorosa e muito difícil. É neste espírito
que até hoje uma mulher lembra-se de dar à sua filha o nome de
Anacaona, um nome que ressoa tanto o esplendor quanto a agonia de um
passado que assombra a tantas mulheres, e homens, hoje.
Quando foram escravizadas, nossas antepassadas acreditavam que quando
morressem seus espíritos retornariam à África. Mais especificamente,
retornariam para uma terra pacífica, a qual chamamos de Ginen,
habitada por deuses e deusas. As mulheres que vieram antes de mim eram
mulheres que falavam metade de uma língua e metade de outra. Elas
falavam o francês e o espanhol de seus colonizadores misturados às
suas próprias línguas africanas. Essas mulheres pareciam estar falando
em línguas estranhas quando rezavam para seus velhos deuses, os
antigos espíritos africanos. Apesar de temerem não serem mais
entendidas por suas antigas divindades, elas inventaram uma nova
língua para descrever o local que passaram a habitar, uma língua da
qual brotaram frases coloridas para atender a circunstâncias
desesperadoras. Quando essas mulheres se cumprimentavam, elas se
descobriam falando em códigos.
-- Como vai você hoje, irmã?
-- Eu sou feia, mas eu estou aqui.
Hoje em dia, muitas das minhas irmãs se cumprimentam bem distante das
terras onde aprenderam a falar em línguas estranhas. Muitas
conseguiram chegar a outras partes, depois de viajarem milhas sem fim
em alto mar, em precárias embarcações que quase lhes tiraram a vida.
Em 29 de outubro de 2002, uma mulher, debilitada pela longa jornada no
oceano, ao avistar terra firme teria se atirado na maré baixa. Outras
pessoas a seguiram, inclusive meninas e meninos pequenos que
preferiram correr o risco de quebrarem um braço ou uma perna a se
separarem de seus pais. Estes são apenas alguns dos milhares que
chegam às costas estadunidenses ao longo do ano, apenas para serem
cercados, algemados, levados presos, e quase sempre devolvidos para o
lugar de onde vieram. Há onze anos atrás uma mulher pulou no mar
quando descobriu que sua bebezinha tinha morrido em seus braços em uma
jornada que ela tinha esperanças que as levasse de encontro a um
futuro melhor. Mãe e filha, foram para o fundo de um oceano que já
contém milhões de almas da /middle passage/, o holocausto do comércio
de escravos. O sacrifício da mulher levou muitos de nós às lágrimas,
mesmo que o acontecido nos fizesse lembrar de um monte de sacrifícios
outros, feitos no passado, em nome de todos nós, para que pudéssemos
estar aqui.
O passado está repleto de exemplos de nossas antepassadas mostrando
tão profunda confiança no mar a ponto de saltarem de navios negreiros
e se deixarem acolher pelas ondas. Elas acreditavam ser o mar o
princípio e o fim de todas as coisas, o caminho para a liberdade e a
passagem para o Ginen. Essas mulheres, mulheres como minha avó que me
ensinou a história de Anacaona, a rainha, têm sido parte da construção
do meu próprio ser desde que eu era uma menininha.
Minha avó acreditava que se uma vida é perdida, uma outra vida brota
em algum outro lugar, sendo essa nova vida ainda mais forte que a
outra. Ela acreditava que uma pessoa não morre, realmente, desde que
alguém se lembre dela, alguém que reconheça que esta pessoa, apesar de
tudo, estava aqui. Nós somos parte de um círculo sem fim, somo as
filhas de Anacaona. Nós envergamos mas não quebramos. Não somos
atraentes, mas ainda assim resistimos. De vez em quando devemos gritar
isso o mais distante que o vento puder levar nossas vozes. /Nou lèd,
nou la!/ Somos feias, mas estamos aqui.
E aqui para ficar".
(Título original: “We Are Ugly, But We Are Here”, extraído da
coletânea Women Writing Resistance: Essays on Latin America and the
Caribbean (Cambridge, MA: South End Press, 2003, 23-27). Tradução de Kátia Costa Santos (krsantos@gmail.com
).
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