Sobre o trabalho da Comissão de Verdade




Psicanalista Maria Rita Kehl
Foto: Michel Filho / Agência O Globo
Psicanalista Maria Rita Kehl Michel Filho / Agência O Globo
RIO — Única psicanalista à frente da Comissão da Verdade, Maria Rita Kehl diz que ‘nem dá para contar’ relatos que vem ouvindo de vítimas da ditadura militar (1964-1985).
Neste primeiro ano, a Comissão ouviu mais de 40 pessoas. Como única psicanalista do grupo, a senhora poderia falar um pouco do sentimento delas?
Cada um cuida de uma área, a minha é de camponeses e índios, e ouvi bastante gente que foi torturada. Dos criminosos ouvi menos. Por enquanto ouvimos só quem se ofereceu para falar. É diferente dos torturadores, que a gente convoca e tem poder de lei para convocar. Não podemos impedir torturadores de mentir, eles mentem mesmo. Mas são obrigados a vir, senão é crime de desobediência. Os torturados são o contrário, querem vir.
Mas e o sentimento deles?
As pessoas que nos procuraram me impressionaram sob muitos aspectos. O primeiro é o lado do sofrimento mesmo, da dor, de como falar sobre o que sofreram dói. A riqueza de detalhes impressiona. Muitas têm as mãos trêmulas, precisam parar de falar, têm vontade de chorar. É um ato de coragem. Mas ninguém teve uma síncope porque trata-se de pessoas fortes, que aguentaram a tortura. Por outro lado, o trauma é revivido, faz o passado voltar para o presente. Algumas nunca falaram com tantos detalhes sobre o que viveram como agora. Percebemos que fica mais fácil de lidar, ao retirarem esta pedra que estava em cima de seu passado há mais de 40 anos, do que reprimindo-a. Não se pode esconder a verdade porque ela começa a mofar e a gerar monstrinhos. Mesmo que isso não possa servir como documento objetivo para acusar alguém, porque as pessoas podem estar confusas e não reconhecerem direito quem é o torturador, pode criar pistas muito consolidadas. A gente tem vários torturados que viram, na cadeia, um companheiro depois dado como morto por ter resistido à prisão. Ou várias pessoas viram outra machucada, passando mal. Então a gente conclui que esta pessoa não morreu fugindo da polícia ou enfrentando a polícia, como disseram, e sim que já estava sem condições de ficar de pé. Ela não pode ter morrido trocando tiros. Isso já é válido.
O coronel Sebastião Curió vai ser ouvido quando?
O Curió é incumbência minha e do Cláudio Fonteles (ex-procurador geral e membro da Comissão). Os camponeses do Araguaia (onde Curió combateu a guerrilha) eu ouvi bastante. Além da dor física, há a humilhação que sofreram. E contam o que foram obrigados a fazer, coisas que nem vou dizer aqui, coisas aviltantes. Sofrem tudo de novo. O pior foi falar da humilhação. Os índios foram maltratados para tentar rastrear guerrilheiros, perderam terras, foram obrigados a carregar corpos, decepar cabeças. Curió será intimado. E em breve.
Índios foram torturados?
Teve pouca tortura com índio, pelo que eu saiba até hoje. Há fotos horríveis de índio pendurado em pau de arara, de uma índia cortada ao meio. Mas são poucos casos. Estou começando a olhar a parte indígena agora, em colaboração com o Instituto Sócio Ambiental, que está há quarenta anos pesquisando indígena, então seria antecipar algo que ainda não sabemos. A violação contra os indígenas foi o modo como a terra deles foi ocupada. À força, às vezes à bala, queimando tudo. Expulsando e aí, sim, torturando os casos de resistência. Tem dois tipos de violação. O primeiro é a disputa por terra, o fazendeiro vai, expulsa à bala. E o outro, importantíssimo, principalmente a partir dos anos 70, foram as políticas de ocupação da Amazônia pelos governos Médici e Geisel, o “integrar para não entregar”. Foi aí que se entregou para grandes empresas e fazendeiros, para fazer hidrelétricas, estradas. Os índios foram tratados não como brasileiros que tinham que ser eventualmente remanejados, mas como lixo na beira do caminho: tira eles dali.

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