Cidinha da Silva: Entrevista para Asymptote Journal (parte 2)
por Daniel Persia e Ana Luiza de Oliveira e Silva
1. Como é o seu processo criativo? Você tem
um ritual diário de escrita?
Meu
processo de produção literária tem dimensões práticas, criativas e outras que
são da ordem do imponderável. Em termos práticos sou uma escritora
relativamente organizada e disciplinada, eu me sento e escrevo nos horários que
me determino a fazê-lo. Não tenho problemas de “tela em branco”, tenho questões
relativas à falta de tempo para escrever. Os horários para a escrita dependem
do volume de trabalhos que preciso dar conta para garantir a sobrevivência
(preparar aulas, palestras, oficinas, cursos, ministrá-los), leituras, estudos,
viagens, administração da loja virtual e da divulgação dos meus livros. O tempo
que sobra para a escrita é muito curto, resume-se a algumas horas semanais que
costumam acontecer pela manhã bem cedo, logo que acordo. Escrevo muito pouco
por impulso, costumo escrever mais em função dos livros que estou pensando ou
que estão em processo de organização. Escrevo bastante por encomenda também,
para publicação em periódicos da imprensa nacional, principalmente, mas também
textos de teatro e ensaios.
2. Como você construiu as personagens que aparecem em Marigô?
E Em minha opinião, a crítica interna feita por membros de um grupo ou comunidade e autocrítica são práticas muito saudáveis e nos ajudam a não repetir erros que criticamos quando cometidos por outros. Acho que é como tomarmos o risco de sermos melhores do que aquilo que criticamos como algo ruim. Nos processos de construção identitária é muito comum cometermos excessos para compensar as faltas históricas e atávicas que nos deixaram fraturas dolorosas. Existem situações em que podemos rir de nós mesmos, um riso vindo de dentro e que pode apontar esses eventuais excessos, como aquelas roupas que usávamos na adolescência para afrontar os pais, para nos diferenciarmos do restante do grupo, e hoje, ao olhar para trás nos perguntamos, “como pude ser tão ridícula”? As personagens de Marigô foram construídas nessa ambiência, com a intenção de criticar um excesso pela ferramenta do humor.
3. Fica aparente na leitura de suas
crônicas, inclusive Marigô, que você faz uso de ironia, sarcasmo, humor, etc.
Qual o papel desses instrumentos de linguagem na sua literatura?
São meus suportes, são as escadas para que eu chegue
onde quero para me comunicar com quem me lê.
4. Pensando no universo inteiro de Sobre-viventes!,
vemos que algumas personagens, como Alice Walker e Assata Shakur, são reais, no
sentido que são figuras históricas. Outras não necessariamente. Como você
desenvolve essas personagens? Elas têm alguma base em pessoas reais?
As personagens reais costumam sê-lo mesmo,
como essas que vocês mencionaram, Walker, Shakur, William Bonner e, de maneira
geral, essas personagens estão nas crônicas, um gênero que nos permite um
diálogo muito intenso com o agora e com o real. Existem outras personagens que
não são reais, no sentido de existirem como individualidades-base na vida real,
estas são arquétipos, fusão de várias coisas, pessoas, características, situações,
são personas construídas para dizer o que quero. Tenho muito controle das
minhas personagens (não sei se com os romances será assim) e isso é importante
pra mim, são minhas criaturas, eu decido pra onde elas vão e como. Certa feita
disse isso numa conversa literária e um crítico de literatura e um escritor
presentes riram muito e trocaram olhares como a dizer: “coitadinha, ela ainda
vai amadurecer e entender que um autor não tem controle das personagens”. E eu
pensava: pode ser que eu mude de ideia, mas, por enquanto, acho que essa
máxima, dita por muita gente que não tem experiência de escrita, não passa de
um clichê. Respeito muito minha própria experiência e, nesta, minhas
personagens são minhas criaturas e eu mantenho o controle, sob pena de ao perdê-lo
fazer uma literatura que não gosto de ler, ou seja, uma literatura que se
preocupa tanto com efeitos especiais e desfechos mirabolantes que perde a atenção
necessária aos detalhes e às costuras que a construção de um processo
consistente e convincente exige. Eu sou uma escritora que busca solidez,
consistência, sem esquecer, contudo, que a pedra um dia foi água e a natureza
das coisas permanece, mesmo quando elas mudam de forma.
5. Como você organizou o livro Sobre-viventes!
? Poderia falar um pouco sobre a dicotomia sobrevivente x vivente, implícita no
título da coletânea?
Essa é a história do povo negro em
diáspora, a gente sobreviveu e sobrevive às atrocidades impostas pelo racismo,
pela exploração econômica e humana, mas a gente buscou e segue buscando,
insistentemente, formas de afirmar nossa existência, de demarcar lugares para
os viventes humanos que somos. Para existir a gente canta, dança, se alimenta
junto, cuida uns dos outros, conspira, sonha, cultiva o humor, a poesia, a
ironia (remédio santo para não engolir sapos); a gente afirma nossa humanidade,
a despeito da ação incessante do racismo para destruí-la. O livro
Sobre-viventes! Materializa esse jogo, esse caminhar no fio da navalha.
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