Os filhos de Luzia
Nos tempos em que o Mar Morto ainda andava doente, éramos todos filhos de Luzia. Mãe parideira e dadivosa, origem do povoamento de todos os mundos, feito por filhos pródigos e corajosos, que ultrapassaram desertos, rios de crocodilos e quedas d’água, mares desconhecidos.
Luzia a tudo assistia e a nada impunha limites. “Quer ir, vá. Filho é do mundo, não é da gente, não”. Tinha a autoridade do começo do mundo, de primeira ancestral, rainha maior. Quantos filhos teve, Luzia nunca soube. Sabe que hoje sente falta de muitos, sapientes, inventores, criativos, verdadeiros gênios que fizeram maravilhas nas terras desbravadas.
Alguns filhos mais gananciosos renegaram Luzia, deixaram as próprias terras e invadiram as terras da mãe, e as esquartejaram, destruíram reinos, deram nomes e limites alheios à organização das antigas terras. Não satisfeitos, arrancaram do ventre de Luzia, os filhos que haviam permanecido com ela e os conduziram em navios luzieiros para um novo mundo. Circundaram a árvore do esquecimento sete vezes para forçá-los a apagar da memória à Luzia e seus ensinamentos, tornando-os escravos e impondo-lhes o trabalho forçado e castigos mil e milhões de atrocidades. Violaram as mulheres, cujo parentesco consigo esqueceram. As mulheres pariram crianças que não se tornaram filhas dos homens que as fecundaram. As crianças nascidas foram chamadas de mestiças, frutos da mescla. Cresceram fazendo o trabalho sujo, acreditando que eram diferentes e melhores do que os descendentes diretos de Luzia, aqueles que mantinham semelhanças físicas com ela. Os projenitores fomentavam a fantasia, interessava-lhes que os filhos de Luzia se mantivessem divididos, assim, enfraquecidos, despotencializados.
O tempo passou e num dado momento os que detinham o poder quiseram alçar os frutos da mescla ao posto de depositários culturais do novo mundo, das boas influências vindas de todos os lados: multi-étnicos, multi-facetados, multi-diversos, multi-celebrativos. Tudo sem conflito, sem animosidade, sem perdas e sem ganhos, sem privilégios e desvantagens, sem dores, só cor e amor.
Mais à frente resgataram do ostracismo a velha e superada Luzia, reivindicaram a ancestralidade esquecida, convocaram DNAs e os estudaram, concluiriam que tudo e todos eram misturados, que quem aparenta ser verde na cara, no DNA é vermelho. Quem tem aparência azul no corpo, no DNA é lilás. Mas e a perseguição aos verdes? Todos sabem que eles são caçados pelo sistema, não é mesmo? Será que ao sacarem o exame de DNA e mostrarem à polícia, provando que seu material genético é vermelho, o sistema os protegerá? Garantirá aos verdes, a sobrevivência e os protegerá do extermínio? São as perguntas que não querem calar e só o material genético com força de salvo-conduto poderá responder. ///
Finalmente consigo postar um texto autoral, não tenho tido tempo para escrever para o blogue e tenho ouvido várias reclamações, além da minha insatisfação. Este "Os filhos de Luzia" será encenado por um grupo de mulheres, dirigido pela dodecana amiga Beth Beli, no espetáculo - Trompas d'África: percussão do Triunfo, com estréia marcada para o dia 30/11, em São Paulo. Assim que tiver mais detalhes sobre o espetáculo posto aqui. Quem puder, compareça.
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