"Oh Lara, cadê Clementina de Jesus? Ai Jesus, cadê Dona Ivone Lara?"
(Deu no jornal do Brasil: "Pesquisa traça e analisa a biografia peculiar de Dona Ivone Lara", por Marcelo Moutinho, jornalista e escritor).
" É espantoso como as músicas de Dona Ivone Lara remetem a ancestrais cantigas de domínio público. Parece que suas sinuosas melodias estão imemorialmente gravadas no inconsciente coletivo e ela apenas as retira de lá para, como uma Iabá, fazer com que breves instantes de transcendência possam rasgar vez por outra a malha ordinária do dia a dia. A essa formidável capacidade, somam-se outras.
Foi Dona Ivone, por exemplo, a primeira mulher a assinar um samba-enredo – e não se trata de um samba qualquer, mas de Os cinco bailes da História do Rio, parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau, que o Império Serrano levou à Avenida em 1965. Foi ela, também, a responsável pela criação de pérolas como Sonho meu e Acreditar (ambas com Delcio Carvalho), Mas quem disse que eu te esqueço (com Hermínio Bello de Carvalho) e Enredo do meu samba (com Jorge Aragão), que integram sem favor o rol dos maiores clássicos do nosso cancioneiro.
Além disso, saindo de uma infância pobre e de um núcleo familiar iletrado, Dona Ivone formou-se assistente social e enfermeira, e trabalhou com a Dra. Nilse da Silveira na aplicação das terapias que revolucionaram, nos anos 1970, o tratamento psiquiátrico.
As tantas facetas que se amalgamam na singularidade dessa personagem que é mito e sinônimo de canção, referência e signo da ancestralidade africana, nunca haviam sido objeto de análise sob a forma de livro. Até agora. Pois a Record acaba de lançar Nasci para sonhar e cantar - Dona Ivone Lara: a mulher no samba (Record, 174 páginas, R$ 32), de Mila Burns. A obra é uma adaptação da dissertação de mestrado da autora em Antropologia Social (pelo Museu Nacional, da UFRJ).
Digno de elogios por preencher uma lacuna da bibliografia sobre a música popular – e, mais genericamente, sobre a cultura brasileira –, o livro narra a história de Dona Ivone da infância aos dias atuais, carreando, na trajetória da protagonista, as profundas mudanças por que passou o país durante o século passado. O ponto central do exame feito por Mila é a tentativa de compreender como uma menina negra e carente, moradora do subúrbio, transformou-se em diva do samba.
A jornalista (repórter do RJ TV, da TV Globo) e antropóloga elenca possibilidades: o fato de a família da sambista ser ligada ao gênero; o casamento com o filho do presidente de uma renomada escola (a extinta Prazer da Serrinha); a capacidade de se impor em um nicho majoritariamente masculino – o dos compositores. Cada uma dessas “razões” é investigada a fundo, à medida que a vida da protagonista se descortina.
Mila demonstra, entre outros detalhes, como Dona Ivone experimentou em âmbito radicalmente íntimo o encontro entre popular e erudito que viria a dar contornos particulares à música brasileira. Provinda de uma família de sambistas e chorões – a mãe desfilava em ranchos, o pai tocava violão de 7 cordas –, a compositora estudou canto orfeônico no internato público, onde permaneceu dos 10 anos até a maioridade. Na escola, chegou a ser aluna de dona Lucília Villa-Lobos, então casada com o maestro. Curiosamente, Dona Ivone também teve aulas de música com Zaíra de Oliveira, a primeira esposa de Donga. No universo próprio que aos poucos se esboçava, a ela operava a síntese entre dois polos: “Fui pro colégio interno, vi um mundo diferente. Voltava pra casa, via outra coisa. Saía de novo, e mais uma coisa”, observa no livro.
Aos 12 anos, estreou como compositora. Estava em casa, acompanhada dos primos mais velhos, Hélio e Fuleiro, que lhe deram um passarinho. As brincadeiras com o bicho inspiraram Tiê-tiê, canção ainda hoje incluída em seu repertório. E Fuleiro, que mais tarde viraria baluarte do Império Serrano, acabou se transformando num dos principais responsáveis pela caminhada da prima no mundo artístico. Foi ele, na verdade, quem começou a cantar as músicas da compositora em rodas de samba. E o fez a pedido da própria, que, ainda jovem e intimidada com o domínio masculino em tais espaços, procurou-o e propôs que apresentasse suas canções como sendo dele.
Dona Ivone frequentava essas rodas, inclusive a que ocorria na casa de Seu Alfredo Costa, o comandante da Prazer da Serrinha. Lá, conheceu o futuro marido, Oscar (filho de Seu Alfredo), e começou a ganhar confiança para apresentar publicamente seus sambas. Quando um grupo dissidente deixou a Prazer da Serrinha e fundou o Império Serrano, ela foi junto. Corria, então, o ano de 1947, e Dona Ivone passou a integrar oficialmente a ala dos compositores da nova escola.
Mila conta, no livro, como se deu a parceria em torno de Os cinco bailes da História do Rio. Bacalhau e Silas de Oliveira, este já consagrado autor de sambas-enredo, tentavam escrever o hino do Império para aquele ano, mas não conseguiam. Haviam bebido demais. Quando Dona Ivone os encontrou e soube da dificuldade, cantarolou parte de uma melodia, que logo ganharia os inspirados versos da dupla. Na época, a escola da Serrinha já era conhecida por trazer inovações ao carnaval, e Fábio Mello, um dos diretores, concluiu que seria interessante reconhecer a participação da compositora e colocar uma mulher assinando o samba junto com os homens. Foi o que aconteceu – e o resto é história.
Como sempre se preocupou em manter a estabilidade financeira que lhe garantia a independência, somente após a aposentadoria Dona Ivone pôde se dedicar exclusivamente à música. O primeiro disco, uma coletânea ao lado de Clementina de Oliveira e Roberto Ribeiro, foi lançado em 1970, ano em que ganhou também a alcunha consagrada: por sugestão dos produtores Oswaldo Sargentelli e Adelzon Alves, a Yvonne Lara do registro em cartório deu lugar a Dona Ivone Lara. No livro, ela se recorda do desgosto inicial com o segundo batismo. “Dona? Pra quê Dona? Não quero isso, não, sou nova, ainda! Não tenho nem 50 anos, imaginem!”, respondeu aos dois na ocasião.
Mila relata ainda o princípio da união com aquele que seria o mais constante parceiro: Delcio Carvalho. Dona Ivone andava deprimida devido à morte de Silas de Oliveira, que teve um infarto enquanto cantava Os cinco bailes. Preocupado com o estado da mulher, o marido Oscar sugeriu a Delcio que escrevesse algumas letras para ela. Três anos depois, em 1975, foi Oscar quem faleceu, e a compositora enfrentou um período de tristeza intensa. Tristeza que o parceiro soube sentir – e purgar em palavras. “O Delcio fazia letras tristes porque olhava para mim e sabia o que eu estava querendo dizer com as minhas melodias”, diz a sambista.
O maior encanto de Nasci para sonhar e cantar vem exatamente dessas revelações, que documentam fatos relevantes com objetividade e sabor. O que não significa que o livro não tenha problemas. Ao adaptar a dissertação, Mila retirou os excessos de referencial acadêmico, mas o pouco que ficou irrompe brutalmente no texto, causando incômodo. Em algumas passagens, faltou também uma revisão mais atenta para eliminar a repetição de expressões e ideias. Por fim, há escorregadelas de pesquisa, como a atribuição da autoria do samba Senhora da canção apenas a Nei Lopes, esquecendo-se do violonista Cláudio Jorge.
A conclusão a que Mila chega ao fim do estudo é que o percurso de Dona Ivone não dependeu só de seus movimentos internos, embora também deles. Houve, segundo a autora, uma confluência paralela de fatores externos. “Quando a compositora começa a se destacar e grava seus primeiros discos, o Brasil atravessa uma fase de notável transformação social. A partir dos anos 1960, o bonito era a diferença, fosse ela de raça, faixa etária ou sexo”, argumenta.
Assim, sem se encaixar em nenhum dos tipos mais conhecidos no meio do samba – não é “tia”, nem passista, nem musa –, Dona Ivone entortou o destino previamente traçado para uma mulher de sua origem e de seu tempo. Em quase nove décadas, foi esposa, mãe, enfermeira, assistente social, artista na essência mais plena do termo. Impôs-se como pérola rara (que é) e construiu uma vida tão rica que dá até enredo de carnaval.
O que o Império Serrano está esperando?" (O título do pôste é um verso da imortal Jovelina Pérola Negra).
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