A ferro e fogo
(Por: Ricardo Aleixo). "Se tomarmos ao pé da letra a oposição dicotômica inspiração/trabalho de arte, tornada clássica pelo modernismo, não teremos grandes possibilidades de fruir de forma mais intensa a obra de Jorge dos Anjos. Sempre atento à exploração microestrutural dos elementos com os quais trabalha – a despeito de sua recorrente opção pelas grandes escalas –, o artista dá a ver sua índole construtiva no modo como reconfigura antigas formas escriturais hauridas no repertório plástico-visual das culturas africanas e do Atlântico Negro – as mesmas que, em mãos/cabeças menos empenhadas na constituição de uma verdadeira poética, têm sido reduzidas à condição de meros resíduos de valor etnográfico ou folclórico.
É que Jorge planeja, de fato, o passo a passo de seu trabalho. Não por pretender fundar uma via de criação inalterável, mas, pelo contrário, por pensar cada projeto como uma instância em que se deve levar em conta a hipótese do erro, do desvio e até mesmo do fracasso. O que faz, por seu turno, com que se torne impertinente falar em fracasso (absoluto) de um projeto, para lembrar o músico-poeta John Cage. Afirma-se aí, nesse ponto de intersecção entre o planejador, o planejamento e a coisa planejada, a maior das qualidades de Jorge dos Anjos como artista, a meu ver: sua capacidade de posicionar-se, creio que todo o tempo, em estado de disponibilidade criativa – atributo a que outros talvez prefiram dar o nome de inspiração.
Tal característica é ressaltada nesta nova série de obras, A ferro e fogo, em que Jorge amplia a dimensão performativa de seu projeto estético por meio da utilização dos dois elementos citados no título, ou melhor, da ação desses elementos sobre um terceiro, o feltro. Mencionar a performance, aqui, significa destacar o quanto há de investimento do corpo na confecção de trabalhos que, apenas contemplados, de forma passiva, numa exposição, pouco diriam da dinâmica de que resultaram. Em outras palavras, o esforço de enfatizar os sinais da participação do corpo do artista na elaboração de sua obra tem como função principal trazer à luz a impactante “inversão performativa da injúria” operada por Jorge dos Anjos (essa expressão foi criada por Judith Butler para falar das estratégias de ressignificação lingüística desenvolvidas pelo feminismo radical dos anos 1970 que aproximaram o movimento das políticas queer – termo que surge, por sua vez, como resposta “de um setor da população gay, lésbica, transexual e transgênero dos Estados Unidos ao caminho que havia tomado o movimento homossexual mais influente”, de acordo com Carmem Hernández Ojeda).
Em gesto análogo ao de “veados” e “sapatões”, que rascunharam novas hipóteses de identidade sexual a partir da ressemantização de expressões de cunho injurioso, em sua origem, Jorge dos Anjos dá outra destinação a um aparato tecnológico apropriado das práticas de terror utilizadas contra os milhões de homens e mulheres negros submetidos, no Brasil, ao trabalho escravo: a impressão a ferro e fogo, sobre seus corpos transformados em mercadorias, de monogramas e marcas de propriedade – e também de punição daqueles que eram apanhados em meio a tentativas de fuga, conforme previa um alvará real de 1741 (“Se lhes ponha com fogo uma marca em uma espádua com a letra ‘F’ …, e se quando se for executar essa pena for achado já com a mesma marca, se lhe cortará uma orelha”).
Tendo confeccionado aproximadamente 100 ferretes que trazem na ponta variações das formas recortadas características do seu trabalho, cada um com cerca de 80 cm, Jorge coloca alguns deles na fornalha e, tão logo estes se encontram suficientemente aquecidos, pousa-os com um misto de suavidade e firmeza sobre a superfície da tela de feltro disposta no chão. Como não perceber, nos deslocamentos corporais do artista – ora assemelhados à dança, ora francamente desajeitados – em busca da melhor posição em relação à tela, a sutil lembrança de que o corpo negro já foi, noutros tempos, o suporte para a gravação de uma variada iconografia que expressava nada menos que uma visão de mundo ainda hoje detectável no imaginário da sociedade brasileira?
Nenhuma injúria será apagada por esses raros gestos de “inversão performativa” – propósito que, de resto, jamais passaria pela cabeça desse artista para quem ética e estética, se não são necessariamente “uma coisa só”, de acordo com o conhecido aforismo do filósofo Wittgenstein, bem podem tornar-se, em certos momentos decisivos da história, faces complementares de uma mesma moeda –, mas somos para sempre afetados por tamanha beleza. Uma beleza inquietante, difícil, áspera, diga-se, porque advinda de um projeto pessoal de atualização e compartilhamento de perguntas tão incômodas quanto fundamentais sobre a recordação como matéria constitutiva da arte e, por extensão, da vida da comunidade
[texto publicado no catálogo da exposição]".
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