Cidinha da Silva em entrevista ao blogue Película Negra
Há umas três semanas recebi uma solicitação de entrevista do blogueiro Filipe Harpo peliculanegra.blogspot.com. Respondi afirmativamente e logo depois chegaram as perguntas. Demorei um pouco para respondê-las, como já sabem, pela habitual falta de tempo, mas também porque foram perguntas inteligentes que me instigaram a pensar. Publico agora o resultado, postado ontem no blogue película negra.
A literatura tornou-se um caminho para expor suas idéias a partir de que ponto na sua vida? E o porquê escolheu a prosa como o seu caminho na escrita?
Eu comecei a publicar literatura em 2006, 1a edição do Tridente, aos 39 anos. Minha paixão pela leitura e pela escrita, entretanto, teve início quando comecei a ler, aos 5 anos. Os quadrinhos foram a primeira descoberta e mesclaram-se (continuam a se mesclar) com diferentes livros e autores ao longo da vida. Eu me sinto fluida, feliz e confortável ao escrever prosa. Os poemas doem muito, prefiro lê-los. Aliados à dor que me afasta (tenho pouca resistência para sofrer ao escrever), faltam-me talento poético e técnica para criar poemas. Ao contrário do que muita gente professa por aí, escrever um poema é algo dificílimo. Lapidar a palavra até alcançar a precisão da expressão não é para muitos. Tenho me contentado em pescar a poesia da vida vivida para a minha prosa.
Existe muita informação vinculada no Brasil que o próprio Brasil não lê, não se mostra interessado pela literatura, por um arsenal de motivos, mas o principal que geralmente citam são os altos preços das publicações. Como autora de livros infantis, crônicas, além de volumes ligados a área da Educação, como você enxerga a relação da literatura com o brasileiro?
Antes de qualquer coisa é preciso investir na formação de público-leitor. Diversos são os fatores que dificultam a promoção da leitura, o gosto pela literatura, e são anteriores ao preço elevado dos livros. Vejamos: inexiste, no Brasil, uma cultura de valorização do livro, do(a) leitor(a), do conhecimento e do prazer de ler. Falta incentivo ao contato das pessoas não intelectualizadas com o objeto-livro, principalmente por parte das elites intelectuais e dirigentes, que seguem, ao longo de séculos, tratando o livro como um bem destinado a um grupo de pessoas eleitas. O número de bibliotecas públicas nas cidades, com programas massivos e atraentes para convidar as pessoas a freqüenta-las é insuficiente. Não existe também um número satisfatório de bibliotecas nas escolas públicas, quando existem, possuem acervos ultrapassados e pouco dinâmicos no sentido de fomentar a circulação de livros. Graça o desestímulo à leitura na maior parte do ensino de Português e Literatura nas escolas públicas brasileiras, no qual se privilegia aquilo que supostamente “o autor quer dizer” e que o professor (onisciente) sabe o que é, restando ao pobre estudante encontrar “as respostas certas” no processo de interpretação de texto, que, por si só, deveria ser algo subjetivo e pessoal. Por fim, o preço dos livros de literatura no Brasil não é competitivo comparado a outras opções de entretenimento. O alto preço das obras é definido por fatores agregados, tais como: baixa tiragem de cada edição, circulação lenta dos livros na venda a varejo (em livrarias e similares) e ausência de uma política de popularização e valorização da leitura.
Nos últimos anos a literatura infantil no Brasil teve uma grande mudança com a chegada de vários exemplares com histórias envolvendo a temática da cultura afro brasileira e africana sem estereótipos. O curioso é observar dois movimentos que se vê na compra desses exemplares; o adulto que compra o livro para a criança (público alvo) e adultos que compram os livros para si mesmos. Para você, escritora também de uma novela juvenil, qual o impacto que esta nova literatura negra tem sobre adultos e crianças negras?
Houve mudanças pontuais e simbólicas, discordo que tenha sido algo grande. A inflexão de impacto na literatura infantil e juvenil no Brasil, de maneira global, ainda está circunscrita aos anos 70 e 80, com a geração dos grandes escritores e escritoras do gênero que vieram após Lobato, a saber, Ruth Rocha, Marina Colassanti, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga e Bartolomeu Campos Queiroz, para citar alguns. No que concerne aos escritores negros, no gênero, temos o precursor e largamente premiado Joel Rufino dos Santos, Geny Guimarães com os belos e premiados “A cor da ternura” e “Leite de peito” e contemporaneamente, Heloísa Pires Lima, que vem fazendo um trabalho muito consistente, principalmente movido pelo diálogo com culturas africanas, além de Edimilson de Almeida Pereira, autor de “Os reizinhos de Congo”, “Histórias trazidas por um cavalo-marinho” e “Rua Luanda”, dentre inúmeras outras publicações. Um autor que admiro muitíssimo, cuja produção literária me ensina muito. Dentre a vasta obra da octogenária e ativa Ruth Guimarães, dedicada à cultura popular do interior de São Paulo, há vários títulos que também podem ser lidos e desfrutados pelo público infanto-juvenil, embora ela não se defina como uma escritora do gênero. Em que pese não ser especialista no tema, arrisco dizer que ainda somos poucos escritores e escritoras negros com trabalho consistente no campo da chamada literatura infanto-juvenil. Pululam livros de afirmação da identidade negra e também os de auto-ajuda para crianças negras (sem esquecer que existem os de auto-ajuda para crianças brancas, nos quais o “inimigo” pode ser o “pivete”, o “trombadinha”, o morador de favela ou de rua, o bom de bola delinqüente e perigoso, invariavelmente representados por personagens negras). Livros em que, o mais das vezes, a tal “mensagem para a criança” sobrepuja qualquer lampejo de criação literária. Mas, não sejamos mais realistas do que o rei, existe espaço no mercado editorial e em nossos combalidos corações para essa produção. Eu mesma sou uma compradora contumaz de livros em que personagens negras tenham destaque na trama, em que apareçam na capa ou quarta capa em posições dignas... compro, leio, faço a triagem, vejo o que serve para presentear os pequenos da minha vida, os que servirão como referências boas ou ruins para minhas aulas e textos, e aqueles que lerei duas, três vezes, por prazer ou para estudá-los. Penso que essa produção de prosa afirmativa da identidade negra, por parte de autores e autoras negros é que abunda, mais do que uma produção literária, propriamente. Por outro lado, há autores não-negros com trabalhos respeitáveis de literatura dialógica com matrizes afro-brasileiras e/ou africanas, neste campo destaco Rogério Andrade Barbosa (com altos e baixos) Lia Zatz e Carolina Cunha. Esta última, devo confessar, não consigo saber se é negra ou não, pois não há referências quanto ao seu pertencimento racial no catálogo ou no sítio da editora (SM Edições). Não há fotografias nos livros e nunca encontrei imagens confiáveis na Internet, é uma incógnita. Encontrei apenas uma definição de que é “baiana de Salvador e desde menina é atraída pelos mistérios dos encantos africanos, por isso se tornou pesquisadora de línguas e artes africanas no Brasil”. O trabalho literário, o que mais importa, é de excelente qualidade e as ilustrações também são belíssimas, feitas por ela. A grande novidade, ainda tímida, me parece ser a entrada de escritores negro-africanos no mercado editorial brasileiro: desde o poderoso angolano Ondjaki, que conta com o lastro marketeiro de uma das maiores editoras do país para sua literatura de incontestável qualidade a autores bem menos conhecidos, mas com um trabalho muito bom, tais como: Adwoa Badoe e Meshack Asare, de Gana, Mamadou Diallo, do Senegal e Sunny, da Nigéria, dentre outros.
Você tem cinco livros publicados. Como se deu processo de construção deles? É algo que vai acontecendo de forma livre ou obedece um caminho seguro, regras/padrões/prazos, como prefere fazer alguns autores?
Tenho quatro livros publicado, três de literatura e um de ensaios. O quinto livro está pronto, mas ainda inédito. Segue o processo de garimpar editoras e participar de concursos, é também um infanto-juvenil. Normalmente sou uma pessoa organizada para trabalhar, o desenho e organização dos processos é importante para mim, mesmo que vá mudando muita coisa pelo caminho. Gosto de escrever pelas manhãs, meu horário mais produtivo para a vida. Quanto a prazos, depende da demanda, tanto da minha demanda particular, interno-afetiva com o texto em tela, quanto da demanda externa. Um bom exemplo é quando tenho prazo para entregar o trabalho a uma editora ou para inscrever o livro em um concurso. Os prazos e a organização não me atrapalham, ao contrário, me ajudam.
O que muda em Cidinha da Silva a cada livro escrito e publicado?
Creio que são as mudanças trazidas pelas coisas boas que acontecem na vida: às vezes são surpreendentes, outras são presentes esperados e merecidos, às vezes são avatares de alegria, de melhores tempos... um livro escrito e publicado é invariavelmente uma coisa boa e as coisas boas nos tornam seres humanos melhores.
Você além de muitos afazeres também é blogueira, pelo que vi ao contrário de muitos blogs por ai, você posta com certa freqüência nele sobre cultura negra, literatura, quadrinhos e sua vida profissional também. Vi pelas postagens que sente às vezes vontade de desistir e tem vezes que parece estar animada escrevendo-as. O que a motivou usar esta ferramenta virtual?
Iniciei o blogue pouco depois de começar a publicar literatura e tinha o objetivo primeiro de dialogar com meu público, de atingir a um público maior e de ocupar uma fatia de espaço virtual pouco ocupado por escritores e escritoras negros brasileiros. Nunca pensei no blogue como um espaço para produzir literatura, vejo-o muito mais como um espaço de expressão política por meio da arte que acredito e gosto. Às vezes oscilo quanto à continuidade dele porque tenho menos tempo para escrever do que gostaria, isso às vezes me frustra muito. Gostaria de postar mais textos autorais do que notícias, de ter tempo para comentar as notícias e desenvolver minhas reflexões.
Foi através do seu blog também que acabei sabendo que obras suas estarão em breve em versões cinematográficas. Instantaneamente lembrei filmes como A Cor Púrpura, que foi odiado inicialmente pela autora Alice Walker até ela, anos depois, compreender que seu livro tinha virado outro produto e também de Paulo Lins cujo seu Cidade de Deus foi reinventado nos cinemas. Quais são as expectativas e medos em relação à sétima arte inspirada na sua literatura?
Primeiro é importante dizer que algumas obras minhas estão em processo de adaptação como curtas de ficção, nada de telona, por enquanto. Segundo, fico muito animada, sempre, porque acho o cinema um grande barato. O Joel Zito Araújo, amigo querido e cineasta que respeito muito, disse certa vez que tenho textos muito “fílmicos”. Pelo que entendi do comentário dele, são textos que se prestam bem ao cinema. Outro amigo querido, o poeta Ricardo Aleixo menciona a agilidade da minha escrita, o que também está relacionado à imagem, não é? Então, esse “coqueteio” com o cinema é algo que me alegra muito. Por fim, pelo menos de forma racional, separo a obra literária das outras expressões artísticas que ela inspira. Mas gostaria muito que meu texto fosse para o teatro, por exemplo, assim como o texto de Marcelino Freire tem ido, ou seja, de maneira integral, sem cacos, sem xistes de ator, sem acréscimos ou cortes na palavra minha. Que a arte do ator apareça pela interpretação do meu texto que se manteria integral, intacto, isso é um sonho de consumo. Neste momento, a Iléa Ferraz, ilustradora do Pentes e também atriz de sucesso, está montando um espetáculo a partir dos textos do livro “Os nove pentes d’África”, com estréia prevista para agosto, no espaço Tom Jobim, aqui do Rio de Janeiro. Vi uma prévia no lançamento do Pentes, realizado em março deste ano, no Centro Afro-carioca de Cinema, também no Rio. Trata-se de uma criação de dramaturgia, música e de expressão corporal a partir do texto, escrito por mim e das imagens dos pentes desenhados por ela, mas ali não estará o texto “Os nove pentes d’África” em sua integralidade. É uma possibilidade interessante, exige um desapego afro-zen. Estou empenhada em abrir o coração para as novas obras que nasçam a partir da minha. Entretanto, há uma coisa que me irrita, é quando atores ou performers dão ao meu texto uma corporeidade espalhafatosa que meu texto não proporciona. Por mais que a pessoa viaje, não cabem efeitos exagerados em um texto econômico como o Pentes, por exemplo. Já aconteceu algo assim e fiquei bastante frustrada. Senti como se a atriz pusesse meu
texto no chão e descarregasse um pente de tiros de metralhadora sobre ele. Pareceu-me uma performance pronta (e talvez eficaz em outros contextos) encaixada no meu pobre texto.
Você é graduada em historia pela UFMG. Só que virou escritora de renome no cenário da literatura negra nacional. Existe lugar para a historiadora Cidinha quando a escritora entra em ação? A historia que estudou na universidade influencia de alguma forma as historias que conta como escritora?
Sua pergunta tem várias partes. Para início de conversa não me vejo como uma escritora de renome em qualquer cenário, agradeço sua manifestação de carinho e apreço por mim e por meu trabalho. Sou uma escritora séria, dedicada, uma pessoa que lê muito, inclusive para enfrentar suas inúmeras lacunas de conhecimento, que estuda para conhecer novas técnicas de escritura e apurar as que tem, além de escrever e reescrever todo o tempo que minha vida de operária do intelecto (de onde vem meu sustento) permite. Eu tenho verve de pesquisadora e isso me acompanha em todas as atividades, não a pesquisa acadêmica, mas a pesquisa movida pela curiosidade de conhecer, pela necessidade de desenhar a planta baixa de uma obra literária, pela necessidade de melhor construir um projeto artístico. Relendo meus primeiros textos, os publicados e principalmente os que não publiquei, seja pelo meu próprio discernimento, seja por sugestão de outrem, percebo que, mais do que a historiadora, a ativista me tolhia. Hoje estou um pouco mais solta, mas às vezes ainda sou lembrada (por mim mesma ou por leitores críticos) de que a ativista deve se recolher quando estou escrevendo literatura. Como disse Nadine Gordimer ao comentar sua produção literária e a luta inescapável contra o racismo na África do Sul dos tempos terríveis do Apartheid, “estamos discutindo assuntos importantes. Agora vamos deixar de falar sobre eles para que eu possa voltar à questão de escrever sobre eles”.
Vi criticas, sempre muito positivas, sobre seus livros, principalmente “Você me deixe, viu?Eu vou bater meu tambor!”. Na maioria delas, evocam um lado profundo, de uma literatura engajada, feminista, quase uma pretensa responsabilidade sua em escrever literatura negra feminina, pois é autora negra. Eu achei sua linguagem muito simples, temas como sexualidade, amor, relações entre homens e mulheres soltam para o leitor de forma despretensiosa. Você se sente cobrada em escrever literatura negra sobre mulheres, pois é uma autora negra? Como lida com as criticas positivas e já recebeu alguma negativa, já que não encontrei nenhuma?
Primeiro vou comentar o preâmbulo para depois responder às perguntas. Você é um afortunado, eu tenho menos acesso às críticas do que você. Nós, no Brasil, inclusive na Universidade, somos pouco críticos, não é? A crítica é tomada como algo pessoal (às vezes o é, de fato) e as pessoas têm medo de ganhar inimigos ao criticar um trabalho. Confesso que vez ou outra, eu mesma tenho medo de criticar, principalmente trabalhos de amigos. Creio que tendo a lidar bem com a crítica séria e fundamentada, mas se forem coisas destruidoras, maldosas ou burras, convoco a dupla dinâmica das estradas e vamos buscar caminhos. Sim, minha linguagem pretende ser simples. Quero alcançar as pessoas, quero ser lida. Além da simplicidade, busco a economia textual, pois sou prolixa e não quero que meu texto o seja. Sim, me sinto cobrada, apenas por homens que pensam saber o que uma prosadora negra deveria produzir em terras tupiniquins. Em geral, eu ouço as sugestões deles, atenta e muda, mas elas entram por uma orelha e saem pela outra, não esquentam lugar no meu cocoruto.
Vi que o livro Cada Tridente em Seu Lugar foi lançado também em formato e-book. Mas muitos autores atualmente publicam somente na web seus escritos, às vezes por conta que não possuem editores ou até por gosto mesmo dessa nova ferramenta. Está em seus planos publicar algo somente no mundo virtual?
O Tridente será lançado como livro eletrônico, em breve. Estou muito contente porque a editora escolheu três autores para abrir esse caminho e eu estou entre eles. Tenho planos de publicar uma obra virtual, sim. Será um trabalho embasado pelo Pentes e em conversas sobre literatura, especificamente sobre a minha produção literária, desenvolvidas com pessoas diversas em comunidades de favela e periféricas da cidade do Rio de Janeiro.
Para Cidinha da Silva ser escritora negra no Brasil, um país com racismo velado, é...
Uai, racismo velado onde, cara pálida? O racismo aqui é virulento - em que pese não haver racismo brando em lugar algum, é só para contrapor o suposto disfarce - e escancarado. Mata, obstrui e aniquila. Eu sou uma mulher negra aqui e em qualquer lugar do mundo. Mais do que uma escritora negra sou uma negra escritora, tal como seria uma negra médica, gari, cozinheira, professora universitária. Ser negra é nome. É substantivo, principalmente em sociedades racistas e racializadas como a brasileira.
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