Lobato e a caçada ao racismo verde-amarelo

(Por: Heloisa Pires Lima). "A polêmica em torno das personagens lobatianas, após o parecer emitido pelo Conselho Nacional de Educação (set 2010), ganha qualidade se considerar os vários ângulos dessas construções. Primeiramente, o contexto original criador dos enredos. O escritor nascido em 1882 cresceu numa fazenda de café do Vale do Paraíba, na província de Taubaté. Quando moço é para lá que voltaria, durante os estudos na faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na capital. O guri branco vivenciou as dinâmicas escravistas pouco alteradas na República que engatinhava. Nesse tempo, esteve exposto aos argumentos racialistas que ganharam status de ciência para a vida intelectual e artística da qual se tornou freqüentador. Suas biografias não deixam de mencionar a importância do pensamento eugenista de Le Bon, como lentes para ele rever o ambiente rural onde encontra, inclusive, seus Jeca Tatus. E foi como colaborador da Revista do Brasil que Lobato levou o empurrão do folclore, das lendas, dos mitos populares para suas aventuras junto ao setor editorial. Ele descobre uma fonte rica de temas que afirmará como particularidade nacional frente ao incômodo com a excessiva presença de figuras da mitologia européia oferecidas às crianças do país. E é para o Saci, que em 1917, ele desenvolve um questionário e um concurso de pintura como tarefa em busca de uma nova mentalidade nacional, nos seus termos. Mais tarde transformado em livro, lá estarão o tio Barnabé dando voz às lendas de origem africana que, segundo ele, povoavam o imaginário popular. Da mesma forma, a tia Nastácia com seu inventário culinário. Por um lado, a condução de Lobato dá status e integra personagens negros que a sociedade excluía deixando uma peculiar presença negra no universo da literatura infanto-juvenil. O mote também é uma crítica à literatura estrangeira e à produção elitista disponibilizada, na época. Por outro, o material é testemunha ocular de uma espécie de abordagem na arquitetura de figuras negras e o lugar onde foram posicionadas na lógica interna das narrativas. As imagens dos tipos ficcionais, sempre carregadas de sinais, embutem modelos de humanidade que por sua vez, constroem identidades sociais. O ponto de vista de Lobato pode ser acompanhado na redação das histórias que ele assina. Mas também nos desenhos que as interpretam e que acabaram selecionadas para as publicações produzidas em seus poços literários e que continuam a abastecer bibliotecas, videotecas, acervos de brinquedos e brincadeiras no país. A perspectiva dos ilustradores dos livros de Lobato facilita observar o tema racismo, de modo mais distanciado. Ou seja, é uma estratégia para diminuir a resistência característica para a questão em obras consagradas. O treino minucioso pode começar delimitando a postura corporal das personagens, a expressão facial, o tratamento na cor da pele, o relacionamento entre demais figuras em cena, a qualificação atribuída ao cenário das quais participam. Estes, entre outros, são fios a compor o ponto de vista que o analista quer conhecer. Por exemplo, o assunto tratado em Narizinho Arrebitado (1920) aparece implicado às noções de saberes, o erudito e o popular, encarnados em duas mulheres representadas pelo traço de Voltolino (figura 1, de cima para baixo). Desta primeira edição dá até para afirmar a existência de uma relativa equanimidade de tratamento para ambas o que pode ser observado na forma como ele vestiu as mulheres, moldou a expressão da face, a hierarquia na estatura, a composição que comunique afetividade. Isto se acompanharmos o que ocorreu, posteriormente, com interpretações de alguns outros ilustradores da mesma redação. A Nastácia pode se tornar monstrenga ou suja como nas seguintes versões (figura 4 - Villin, 1934 e figura 6 - André Blanc, 1955). Na figura 5, elaborada por Manoel Victor Filho em Trabalhos de Hércules (1972), a estrutura do rosto da mulher negra aparece co-relacionada com a do porco Rabicó. Contraposta aos demais personagens insuflados de humanidade, sua Nastácia recebe uma expressão facial mais idiotizada a acompanhar a bestialização a ela imposta. Portanto, nessas páginas nem mesmo como modelo de humanidade ela é oferecida ao leitor. O que a desumaniza também a coloca mais próxima da chacota. Se o resultado perfila a hierarquia social entre os personagens, a vertente negra africana que ela representa, também estará sendo desqualificada e ridicularizada. O narrador da visualidade julga e desvaloriza a origem social com o tratamento que dá ao tema. Estas breves ocorrências relacionadas à Lobato seriam suficientes para ponderar acerca das imagens que circularam para leitores juvenis d´outros tempos. Os sinais positivos ou negativos que acompanham as ilustrações fizeram parte de uma rede simbólica que atingiu diretamente a percepção não apenas das pessoas reais de outrora. Tais identidades espelhadas nessa descendência repercutem até os dias atuais. Oras o passado! O que foi atrás vivenciado desapareceu ou permanece em algum lugar do imaginário social? Lá, nem sempre tão lá atrás assim, as formas lúdicas sustentaram criadouros de correntes de pensamento a identificar parcelas da população. O aparato simbólico para a origem européia que valoriza positivamente os traços fenotípicos não deixa de informar como contraponto, uma origem africana. A composição foi uma arma a fomentar estigmas. A representação do Saci lobatiano pode ser explorada para demonstrar os vínculos entre a resposta particular numa autoria e o circuito cultural que a gerou. O detalhe da primeira capa do livro O Saci pererê: resultado de um inquérito, com ilustrações internas de Voltolino, expõe a interpretação do desenhista para o qual poderiam caber inúmeras leituras. Talvez o barrete com o qual vestiu a cabeça da figurinha preta pudesse estar associado aos ícones revolucionários radicais europeus ou ao trickster africano símbolo de dinamismos e liberdade irrestrita. É mais provável que um brasileirinho lesse a demonização da figura recolhida do folclore. Lá estão os chifres e a ferocidade estampada no rosto assustador com dentes vampirescos. O próprio Lobato assina a obra com o pseudônimo de Um Demonólogo Amado. O discurso visual com o Saci poderia ter a intenção de resgate cultural (figuras 2 e 3 - capa assinada por J. Wash Rodrigues, 1918). No entanto, hoje, o saci preto e imbricado às idéias cristãs de maldade é material que promove desqualificações culturais associativos à origem negra. Cada elemento visual ou seu conjunto sintetiza e emaranha crenças no momento de sua criação. Todavia, não há leitura única na recepção da mensagem. Se num contexto a capa pode significar ruptura e avanço, noutro pode facilitar desvalorização e conservadorismo. E haveria diferença ou tanto faz a capa ser percebida por um adulto ou uma criança a partir da simples exposição do livro numa prateleira? Seria possível levantar fatores para como cada qual processaria a instauração do recado valorativo e suas conseqüências de ordem afetiva nessa comunicação? Portanto, toda a busca de compreensão da obra infantil ou juvenil como espelho para elaborações de ordem emocional presume o fato de ali haver um espaço para o leitor reconhecer a si mesmo ou o outro. O apreço auxilia na promoção da auto-estima e a dos afetos a elaborar alteridades. Por isso há de haver sensibilidade para considerar o poder de difusão de preconceitos e estereotipias que uma imagem pode conter. Para a habilidade do analista, se já foi lançada a hipótese do leitor das imagens ser uma criança, acrescentemos a circunstância social de ser ela uma criança negra em processo de elaborar sua origem numa escola da época de Lobato. A via literária estaria fornecendo elementos para uma auto- percepção e de suas raízes negras. Além do mais, esse leitor negro teria que lidar com outras crianças, que o perceberiam com o auxílio de uma biblioteca que o constrangeria. A exposição a tamanha violência, nesse caso simbólica, faz saltar aos olhos o destrato hipotético de um preceito educacional e de alto valor nos nossos dias: a eliminação de constrangimentos para o pleno desenvolvimento das personalidades em formação. Os preceitos educacionais atuais responsabilizariam o dos velhos tempos pelo incômodo imposto ao educando. As Nastácias desqualificadas lá atrás trazem para cá nuanças que dizem respeito, às idéias associadas de superioridade e inferioridade racial. A figura feminina boçalizada e o saci demonizado serviriam perfeitamente para qualquer manual de nossos tempos que discorresse a respeito de como se formam os pensamentos xenófobos. O mesmo exercício de leitura dos trechos visuais renderia caso o alvo fosse as imagens construídas por meio da escrita de Lobato. Todavia, vale deslocar a ênfase nos textos pioneiros do autor. Para não correr o risco de etiquetar toda a obra por um de seus aspectos, mais importante é fazer notar o leitor inserido numa e outra sociedade. É o ambiente social que promove ou impede a circulação de fórmulas racistas para a geração a ser formada. Por sua vez, um público com pouca maturidade. O jovem exposto à agressão é quem merece destaque. Pouca idade e poucos elementos para se defender do ataque violento. É ao adulto e à sociedade madura a quem cabe a proteção e a responsabilidade frente a circulação desatenta do ataque físico ou moral da pessoa jovem. O treino de perceber a particularidade de um jovenzinho negro submetido à agressões inclui a singular via literária. A questão atinge em cheio o setor editorial com a demanda vinda dos meios educacionais, sobretudo a partir da conquista histórica da Lei 10639/2003 que integra o tema racismo no debate pedagógico maior. Pois embora algumas teorias racistas tenham sido banidas do mundo adulto e refutadas por acadêmicos maduros, veja que podem adquirir, nos aparentemente ingênuos formatos de livro infantis, canais para fixar preconceitos, estimular estereotipias e evocar atitudes discriminatórias. Todo projeto editorial tem seus propósitos. Quando relançam obras do passado surge a pergunta implacável: O que significa reaplicá-las hoje para um público juvenil? Se mostrar alheio ao fato de algumas obras se aliarem à condenação da religiosidade de matriz africana, ou à facilitação de apelidos promovidos pelos compêndios é reificar a invisibilidade, por que não dizer a irrelevância da recepção racista para o leitor negro. Caso propuséssemos ao adulto de hoje que buscasse a memória de personagens que habitaram a literatura a qual teve acesso, aqueles que preencheram afetivamente, sua infância seria uma chave para dimensionar o que ocorre com a criança de hoje. Da mesma forma que esse percurso pessoal, a sociedade acumula repertórios assentados como camadas de um imaginário coletivo a intervir na identidade histórica que esta imagina para si. Vale alertar, ainda, para a desproporção entre referências oferecidas ao leitor numa e noutra origem continental, seja asiática, indígena americana, do oriente, dos pólos da terra oferecidos nas antigas bibliotecas dos brasileiros. Sobretudo ao cotejarmos com universos temáticos que esbanjam a origem européia. Isto quer dizer que a presença negra nas foi rara e quando ocorreu foi marcada por abordagens ficcionais pouco positivas para elaboração de identidades acerca da parcela negra da população real. Perceber o racismo verde-amarelo em sua dimensão editorial talvez seja a oportunidade que a polêmica em torno de Lobato ofereça para escaparmos de uma armadilha reflexiva. Evocar a época da produção não pode se tornar autorização para fecharmos os olhos às agressões que ela possa conter. Se eliminar o passado é inviável enquanto historia do livro no país, também o é reconhecer a estrutura criativa dos textos. Todavia, a visão parcial elege as exaltações que o mundo literário confere ao consagrado Lobato e promove uma espécie de impedimento para a compreensão da obra em sua totalidade. E nega a presença de estereótipos. Ao invés do temor, de transformar em tabu qualquer análise, voltar aos Lobatos do passado pode propiciar ângulos inéditos a enriquecer a relação atual com essa literatura. Significa apostar no dinamismo da leitura que uma obra propicia e viabilizar a crítica sadia. Se realidade e representação são faces de uma mesma moeda, se uma influencia a outra e vice-versa ao contrário, poderia dizer uma personagem desse cenário, o fato é que há uma demanda educacional interlocutora da produção editorial. Se o diagnóstico sobre o excesso de representações pejorativas desqualificando insistentemente as referências à população negra no Brasil o que fazer quando estas voltam ao futuro? Como entraremos nessa aventura? Caçadas de Pedrinho (original de1933) é o título analisado com a responsabilidade que o Conselho Nacional de Educação chama para si. A relatora Nilma Gomes perfila a questão do racismo na Educação Nacional para o parecer que atrela uma série de medidas cautelares para a circulação da obra. O objetivo de promover uma educação anti-racista prevê a formação do educador para a introdução de tais conteúdos. Há de se aplaudir a iniciativa. Pois quando o inquestionável, aquilo que sempre passou despercebido cessa de sê-lo, quando a agressão deixa de ser naturalizada e a negação perde força para assumir enfrentamentos temos uma pista de saúde social e uma chance para conviver com a arte de outros tempos. Pois um dos limites à liberdade irrestrita dessa circulação é o racismo dirigido à tenra idade. A caça é aos racismos ignorados e não à obra ou seu autor. O desafio está colocado para a sociedade. E sobretudo, aos circuitos editoriais que terão que encontrar formas de respondê-lo". *Heloísa Pires Lima é Antropóloga doutora titulada pela USP, criou e foi editora da Selo Negro Edições e é autora, entre outros, de Histórias da Preta (1998,Cia das letrinhas) e Lendas da África Moderna (2010, Elementar).

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