Mário, Rachel e a poética do amor
Por Cidinha da Silva
Os jornais virtuais informam sobre atrocidades cometidas contra animais, gatos, cachorros e outros. Espécie de diversão macabra das pessoas no século XXI. Eu não sabia da missa um terço, talvez embrutecida pelas ações racistas, pelas fobias a gêneros e orientações sexuais há séculos impostas aos sujeitos humanos dissonantes.
A moça negra, toda negra, vista como branca pelos olhos mórbidos vocifera que não aceitará culpas por ser fruto de sucessivas violências raciais. Porém, devagar com o andor, senhora cronista. Há também mestiços filhos do amor. Eu evoco Maria da Fé na cena de condução do navio que enfrenta o estupro colonial. Evoco sua capacidade alquímica de tornar-se negra e espero que a moça e os seus encontrem paz na guerra.
Os que falam desde dentro também podem ser muito cruéis. Vejam agora tudo o que se quer encontrar na correspondência do Mário (substrato para a Veja) reduzida à fofoca de pegar ou não pegar meninos, em detrimento da densidade poética da escrita de um homem trágico, gay e negro, vivo num meio que reconhecia e reverenciava sua genialidade, mas, como de hábito com os gênios, não permitia sua plena humanidade. Deve haver muito mais do que um homem gay nas cartas.
Os jornais virtuais dão conta também de que no país do presidente negro uma mulher branca se passa por negra e dirige organização tradicional africano-americana. O fato em si me interessa menos do que a interpretação do campo pós-racial, obviamente, mais favorável a Rachel Dolezal do que a Mário de Andrade.
Na terra do operário e da ativista política torturada que chegaram à presidência da república, os tupiniquins evasivos propõem sofisticação do debate como forma de, mais uma vez, escapar das lições básicas do racismo. A cartilha do dia é mais ou menos a seguinte: se você é branco e escolhe ser negro como Raquel, tem filhos negros e vivencia os efeitos do racismo na vida deles, debuta na Capoeira Angola ou é discriminado por ser de religiões de matrizes africanas, compreenda o ensinamento primevo, você não se torna negro por esses motivos, nem nas ilusórias sociedades pós-raciais. Você é branco, continua branco, compreendeu baby? A novidade, o salutar, é que na esfera íntima, no seu campo de percepção do mundo, você nunca mais voltará ao lugar confortável de desconhecimento dos privilégios da branquitude. Apenas isso. E veja se cresce e sai desse lugar de quem pede colo porque fez o mínimo exigido a alguém que pauta a vida por princípios de dignidade.
Aqui dentro é São João e meu amigo poeta performa sobre vidro e não se corta, como os filhos de Ayrá pulam a fogueira dedicada a ele e não se queimam, como Oxum pisou em brasas, mas manteve a elegância a caminho do palácio de Obá, como se pisasse no tapete de flores aparente (e foi depois que vingou-se, emboscando-a com a mentira da orelha que daria sabor à comida).
Nas ruas o amor acontece pleno de contradições, de mercado inclusive: tem cotações, alta e baixa de preços, sexualidades digitais x sexualidades analógicas, gozos virtuais e encontros mediados por máquinas, tal qual o mercado financeiro.
E é por configurar denso material humano que as cartas de Mário e seus segredos poderiam exercer fascínio. Porque o amor oferece sol de verão e sombra de copa grande ao mesmo tempo, água fresca, comida, perfume, canto de passarinho. Sim, o amor é também exigente, tira quem ama do centro, inverte o foco, reclama atenção para as borboletas coloridas, telefona de madrugada, grita pedindo colo, grita ao gozar (e para gozar). Sim, o amor convulsiona a rotina, o esquema, o planejamento prévio. Contrapõe dinâmica à letargia.
O amor traz saúde porque vira do avesso, põe os pés para cima e a cabeça para baixo. Desconfio que seja amor, aquele que suplanta a dor, a angústia e a amargura, o que encontrarão ao abrir as cartas de Mário.
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