Antônio Pompêo e o desejo cerceado de ser artista pleno
Antônio Pompêo e o desejo cerceado de ser artista pleno
A escritora Cidinha da Silva comenta a morte do ator e a ausência de bons trabalhos para artistas negros, que acabam reféns de estereótipos: “Poucos conseguiram diversificar os papéis de mãe de santo, escravizados, capoeiras, bandidos secundários, bêbados e arruaceiros”
Por Cidinha da Silva*
A morte precoce do ator Antônio Pompêo me deixou muito reflexiva, tanto pelas circunstâncias da tristeza em torno da vida do artista, noticiadas por uma de suas amigas mais próximas, a também atriz Zezé Motta, quanto pelas reações das pessoas. Principalmente os depoimentos agressivos e ressentidos.
Mesmo que não faça parte do time beatificador das pessoas mortas, fico tentando entender tanta peçonha derramada pela tela das redes sociais.
Elegi três exemplos-síntese para decantar o incômodo. No primeiro deles, uma moça, cujo pertencimento racial não pude aferir, disse: “Eu até entendo a situação dele (tristeza do Pompêo), mas, peraí, gente, ele estava empregado. E os outros negros desempregados?”.
Não consegui perceber se o texto falava de negros artistas ou de pessoas negras desempregadas de um modo geral. Em qualquer das hipóteses existe uma confusão grande de percepção e de análise. Antes de tudo, não sei a que “emprego atual” a afirmativa se referia, mas, quando Zezé Motta denunciou a falta de oportunidades de trabalho para o ator, seguramente falava de bons trabalhos. De personagens, tramas que dialogassem com as expectativas de um grande ator.
Se pensarmos especificamente na TV, as melhores expectativas nem sempre passam por papéis grandiosos. Elas estão mais relacionadas à possibilidade frequente de interpretar papéis variados e significativos, como acontece com um grupo valorizado de atores e atrizes brancos. Podemos citar uma lista enorme, de diferentes gerações, às quais são oferecidos papéis diversificados.
Para me ater a novelas do momento e a atores e atrizes consistentes, Glória Menezes, por exemplo, interpreta a divertida, elitista e picareta mãe de um mauricinho-empresário do mundo da moda. Trata-se de uma mulher idosa que não quer ser chamada de avó para não ser envelhecida, entre outras excentricidades. Um daqueles papéis que os autores criam para reverenciar artistas admirados e granjeadores de público.
José de Abreu pode ser visto duas vezes no mesmo dia. À tarde, em novela reapresentada, interpreta um guru indiano. Na novela do horário nobre é um gangster, chefe de facção do crime organizado. Perdeu 10 ou 15 quilos para fazer o papel de bandido. A composição da personagem está magnífica. É um dos melhores momentos de sua longa e polifônica carreira.
Tony Ramos também está nas duas telenovelas. À tarde, representa um zeloso e conservador pai de família indiano. À noite, integra a turma de Zé de Abreu, gangster também, mas, ao contrário daquele, é pai amoroso de uma menina, pai controverso de um filho policial, perseguido pela facção. Bom amante, personagem complexo, cujo olhar dúbio para o chefe nos permitia antever que em algum momento viraria o jogo.
Os meninos e meninas (brancos) de Malhação recebem investimentos diversos. Atuam seguidamente nas novelas das 18h e das 19h. Em minisséries. Contracenam com os grandes, recebem dicas, aprendem pelo exemplo, pela convivência com os maiorais e, principalmente, pela oportunidade de atuar continuamente, corrigir erros e melhorar a técnica. Em outras palavras, são cuidadosamente preparados para exercer o ofício de ator e atriz.
Da geração de Pompêo e das anteriores, poucos conseguiram diversificar os papéis de mãe de santo, escravizados, capoeiras, bandidos secundários, bêbados, arruaceiros e representar também empresários, médicas, arquitetas, delegados, coronéis de polícia, artistas, donas de casa, padres. Léa Garcia, Zezé Motta, Elisa Lucinda, Milton Gonçalves, Edson Montenegro, mais alguém?
Da nova geração, Camila Pitanga, Lázaro Ramos, Taís Araújo e Sheron Mennezzes estão entre os top, interpretam papéis diversos. Têm a possibilidade de aprimorar sua técnica. Cris Vianna, Juliana Alves e Marcello Melo Júnior vez ou outra conseguem variar os papéis.
Da novíssima geração, Roberta Rodrigues e Jonathan Haagensen aparecem com certa frequência, mas ainda encapsulados em papéis dos núcleos de favela, de bandidos (ou policiais).
A complexidade, diversidade e constância de possibilidades interpretativas conformam a fortuna técnica e crítica de atrizes e atores. Atuar é imperativo para consolidar a carreira. Para os profissionais negros da dramaturgia, essa possibilidade costuma se viabilizar quando produzem os próprios trabalhos artísticos. Mas, nem todo mundo quer isso. A produção consome tempo inacreditável dos artistas e muitos querem apenas exercer o legítimo direito de atuar.
Salta de minha memória uma entrevista de Gilberto Gil, dos anos 1980, quando o cantor enveredou pela política baiana como secretário de Cultura. Perguntado se a distribuição de seu tempo mudaria muito, ele respondeu: “Sim, vai mudar muito, porque estou acostumado a dividir meu tempo entre a música e fazer nada. Penso que agora ficarei entre a música e a política”.
Veja você, um dos artistas mais prolíficos da música brasileira precisa de tempo para “não fazer nada”.
Precisa daqueles momentos em que se faz tudo o que se queira, ou o nada da curtição dos filhos, dos amigos, do mar, da existência, porque, como se sabe (Gil não inaugurou isso), a cabeça precisa estar leve para criar.
Mas, nega-se frequentemente esse direito ao artista quando se afirma “Ah, estava triste, por quê? Ele estava empregado. E os outros, desempregados?” Quando se trata de um artista negro, então, chega-se a recomendar o anestésico da humildade.
Ele ou ela deve olhar para os lados, constatar o triste quadro ao redor e agradecer aos céus por ter um trabalho qualquer. Não deve escolher demais, deve contentar-se com pouco, até com migalhas. Em suma, deve se resignar ao mediano, ou mesmo à mediocridade, porque não lhe é permitido ousar. Sonhar. Derivar. Transgredir. Querer o melhor. Desejar ser um dos maiores e assim ser tratado.
Um emprego em qualquer área, não se pode esquecer, muitas vezes é a forma que o artista encontra para sobreviver (pagar as contas) e para autofinanciar sua dedicação parcial ao fazer artístico. E boa parte dos artistas quer o contrário. Quer que seu trabalho artístico o sustente economicamente e lhe permita tempo livre para criar, além de recursos para o aprimoramento técnico.
O segundo exemplo-síntese é a radicalização da mediocridade à qual tentam relegar os artistas negros. Um colunista (certamente branco) comentou num jornal de grande circulação os rumores sobre a morte de Pompêo. Ladrou assim: “Estava sem trabalho? Por que não encheu uma caixa de picolé e foi vender na praia?”.
É tão duro e desrespeitoso que a vontade é dizer meia dúzia de palavrões. E ainda haverá gente perguntando qual é o problema de mandar alguém vender picolés? Nenhum, se não for, como neste caso, uma forma de desqualificar o artista e seu desejo de criar, de fazer arte, mandando-o fazer qualquer coisa que nada tenha a ver com seu ofício de ator.
Por fim, o terceiro exemplo-síntese é o chamado fogo amigo. Um homem negro, supostamente sensível à arte, disse: “Mas trabalho é só na Globo? Tava sofrendo porque não estava na Globo? Por que não foi trabalhar noutro lugar? Tanto canal de televisão aí”.
É dureza! Com amigos desse tipo, ninguém precisa de inimigos. É preciso perceber que compor a área dramatúrgica dos canais de TV está além da vontade dos atores e atrizes. Imperam as normas de mercado e exigências do produto televisivo da vez.
Entretanto, o fogo amigo é tacanho, não entende que esse mercado opera pela lógica racista que estereotipa, subalterniza e paga menos aos artistas negros. Isso entristece. Revolta. Mata.
Por outro lado, nem todo mundo tem ímpeto para produzir os próprios espetáculos. Alguns, economicamente independentes, como Antônio Fagundes, produzem os espetáculos que desejam, quando desejam, porque desejam. Outros, como número substantivo de atrizes e atores negros, precisam se autoproduzir para ter trabalho, porque quase não são convidados para participar das produções dos colegas. Principalmente em bons papéis e bons projetos. Estruturados. Bem remunerados.
Nem todos os atores e atrizes negros querem fazer teatro negro como os excelentes Lucélia Sérgio e Sidney Santiago (Os Crespos), Valdineia Soriano (Bando de Teatro Olodum), Rodrigo dos Santos (Cia dos Comuns) e Thais Dias (Coletivo Negro), entre outros. É desejável e salutar também que possam fazer essa escolha.
Denzel Washington, um dos melhores atores estadunidenses de sua geração, não faz parte de qualquer grupo racial de criação. Atua no mainstream. É ator de Hollywood. Ator negro de Hollywood, ele sabe e nós também. É um homem consciente do próprio lugar de liderança negra no mundo do cinema e de representante da comunidade negra em sua área de atuação. Uma representação que se dá pelo pertencimento a uma comunidade de destino, não necessariamente a um grupo artístico, composto apenas por negros dessa comunidade.
Antônio Pompêo também atuava no mainstream. Em telenovelas. No cinema. Na Globo. Em outros canais de TV. Além de atuar no sindicato dos artistas e em espaços midiáticos com discurso pró-direitos dos negros no mundo da arte e na sociedade civil como um todo.
E, de novo, ser ator é uma coisa. Ser produtor é outra. Os atores e atrizes não devem ser condenados a produzir o próprio trabalho como condição para trabalhar. Tampouco forçados à resignação ao real “é assim mesmo para os negros. Ninguém te contou, baby?”.
É facílimo indicar como as outras pessoas devem conduzir sua carreira artística, principalmente oferecer conselhos balizados pela mediocridade. João Marcelo, estudante de escola pública em Brasília, nos ajuda a entender o funcionamento desse mecanismo. Dito de outro modo, a forma como a mediocridade tatua o universo particular de algumas pessoas.
Em resposta às críticas anticotas nas universidades públicas feitas pelo palpiteiro Alexandre Garcia, João Marcelo foi preciso: “Quem ascendeu na carreira com favores e migalhas dos plutocratas só pode enxergar nos outros os vícios que carrega”.
A arrogância dos medíocres não poderia mesmo especular outro comportamento para Pompêo (e para outros artistas criativos e exigentes) que não passasse por suas próprias limitações. De talento, determinação e de caráter.
Foto de capa: Reprodução/Facebook
*Cidinha da Silva é escritora. Publicou, entre outros, Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê, 2013) eAfricanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (FCP, 2014). Despacha diariamente em sua fanpage
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