Primeira HQ do ano lida
Por Cidinha da Silva
A ideia era ler a HQ “Curvas
perigosas” (1), da argentina Maitena Burundarena, nos momentos definidos para
leitura, mas aconteceu o bom do arrebatamento que só nos permite largar o livro
quando termina. Tradução impecável de Maria Alzira Brum Lemos. Os parâmetros de impecabilidade a que me
refiro são definidos por meu conhecimento razoável da língua portuguesa e pelo
quanto avalio como adequada, surpreendente e/ou precisa, a escolha de
expressões e construções semânticas que a tradutora faz para dar sentido ao
texto traduzido. A forma como procura
gírias e jargões nossos que podem ser correlatos à língua original. Por
exemplo, na página 64, cujo tema é “Cuidados com o sol”, na tirinha “Qual é o
seu tipo de pele e como reage à exposição solar?”, são apresentados os tipos “aspirina”,
“verde”, “camarão”, “caranguejo”, “lagarto” e “chouriço”.
Meu olhar treinado manteve-se atento
a possíveis escorregões racistas e não encontrá-los foi uma ponte para a
fluidez da leitura, porque se autora ou tradutora se valem de preconceitos e estereótipos,
fatalmente acionam meus repertórios de defesa e de sobrevivência.
Não sei se “chouriço” é uma palavra
que exista no espanhol, mas sei como se faz chouriço, pelo menos uma técnica para
fazê-lo, existem outras, certamente. Observava meu pai preparando chouriço de
porco, quando criança. Lembro-me bem das mudanças que iam ocorrendo na cor do
sangue, matéria prima do chouriço que conheço, ainda na bacia de ágata; a ação
do tempo e o “talhamento”, a coagulação do sangue – será que vem daí a
expressão “o sangue taiou de raiva”? Outra
mudança de cor do sangue era mediada pela cor branca opaca da tripa do porco no
qual era depositado. Lembro-me da cor final depois da fritura, antes de ser
devorado e se assemelha à cor da personagem.
Uma baita tradução de uma baita escrita provoca isso em mim, é capaz de
acionar inventários afetivos e vivenciais, às vezes adormecidos.
As reflexões propostas pelos diálogos
são sagazes, o humor inteligente, a linguagem criativa e a convocação dos
nossos repertórios é constante e fluida. O traço de Maitena é divertido,
arrebata e não me pareceu estigmatizar qualquer grupo étnico, racial, de gênero
ou classe.
Um incômodo é que tudo me pareceu muito hetero
e cisnormativo, o texto, a ambiência, as escolhas de enfoque, como se pessoas
trans, lésbicas, gays não existissem no mundo construído e transitável por
mulheres e homens cis, pelo menos nessa obra.
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