Assim me disse Carlos Moore
O Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira é uma obra monumental. Escrito por Noelly Novaes Coelho, inúmeras vezes é confundido com trabalho realizado por equipe de pesquisadores. A autora conserta, mas pede que não perguntem como ela conseguiu fazer tudo aquilo sozinha. Só sabe que trabalhou dia e noite, sem interromper suas atividades acadêmicas na USP, durante três anos, ao fim dos quais o dicionário estava pronto.
A mim parece que essa capacidade imensa de trabalho está ligada à obstinação de construir uma obra. À certeza da importância que ela terá para a humanidade – no sentido pleno de significado para os seres humanos que somos. Para nos tornar melhores. Para alargar nossa compreensão das coisas. Para aprofundar o pensamento.
A palavra Literatura está escrita com destaque no título do dicionário e isto parece ser mais do que um recurso de composição estética da capa. É que a obra trata de literatura infantil e juvenil. Não mapeia e analisa a simples escrita endereçada a crianças e jovens.
Noelly está confortavelmente instalada entre os 82 e 84 anos e aconselha todas as pessoas a completarem 80 anos. Com saúde.
Folhear o dicionário, rememorar a palestra de Noelly no 9o Seminário de Literatura Infantil e Juvenil da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, trouxe à tona uma conversa que mantive com Carlos Moore, em 2006, enquanto nos deslocávamos do aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, para um seminário sobre literatura africana, em Contagem. Comíamos pães de queijo e falávamos sobre as agruras da constituição do intelectual negro.
Carlos, das raízes mais profundas de sua generosidade me dizia em portunhol caribenho: “para escrever o livro tal, eu pesquisei 20 anos. Para escrever tal e tal, 17 anos. Eu não saio, não sou de badalação, como vocês dizem por aqui. Porque se eu ficar em eventos, eu não pesquiso, não escrevo”. Era uma dimensão do tempo da produção intelectual completamente nova para mim. Noelly escreveu o dicionário em três anos, mas pesquisou a vida inteira. Recolhe informações, organiza-as, analisa-as, ao longo da vida. Como o faz Carlos.
Continuando a conversa com o pesquisador cubano, eu ponderava o quanto a superficialidade do debate racial no Brasil obliterava a produção de conhecimento mais estendida e aprofundada do intelectual negro brasileiro, cujo tema de pesquisa são as relações raciais e sua interface com variados campos do conhecimento. Basta ver nos dias de hoje, o tempo empregado por consistentes intelectuais negros, obrigados a comentar matérias medíocres, mas não inócuas, publicadas diuturnamente na imprensa brasileira, na tentativa incansável de provar a inexistência de racismo por aqui. E ainda assim, esses intelectuais produzem. Muito. Mas as labaredas da mediocridade chamuscam, desanimam. Apagá-las cansa e rouba energia preciosa de transformação. Que venha o bom combate. O debate sério. A argumentação que não idiotize o adversário como fez o semanário “Veja” (edição 2001, ano 40, número 22), ao abordar a suposta inexistência de racismo (que ela chama de raça) no Brasil. Continua na próxima edição.
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