Moçambique sem caricaturas

(Por José de Sousa Miguel Lopes - Moçambicano, Professor na UNILESTE-MG) Na página 7 do Caderno Mais da edição da Folha de S. Paulo de 17/06/2007 fui surpreendido com o texto Modernidade e caricatura do historiador Manolo Florentino da UFRJ, no qual o autor procura dar conta de fragmentos da realidade atual de Moçambique, utilizando o recorte tradiçãoxmodernidade. No momento em que a realidade africana começa, a duras penas, a emergir na sociedade brasileira, o mínimo que se pode exigir é que aqueles que sobre ela se debrucem, o façam com um mínimo de conhecimento. A questão é mais séria quando o que se difunde sobre África parte de intelectuais que, por dever de ofício, deveriam estar comprometidos com um mínimo de rigor sobre os fatos que analisam. O que Manolo Florentino escreve em seu texto é uma mistura de verdades e falsidades, o que revela pouca seriedade no trato do assunto abordado. A sensação que me ficou, no final da leitura, é que o texto resultou não de uma visita do autor a Moçambique, mas de uma conversa telefônica ou por Internet que o autor manteve com duas ou três pessoas residentes naquele país. Não que não se possam escrever artigos, a partir de mecanismos informativos desse teor. Mas convenhamos, que agir dessa forma, comporta um elevado risco de se produzir uma caricatura da realidade que se pretende retratar. Foi o que aconteceu de forma lamentável. Mais lamentável, por se tratar de um historiador e, ainda por cima, pertencente a uma prestigiosa e respeitada Universidade brasileira. Manolo Florentino produziu uma caricatura sobre Moçambique. Prestou ao público brasileiro um mau serviço no que toca á difusão da realidade moçambicana atual. Não há rigor de análise. Faltou prudência, um modo de refletir que impede que um indivíduo se atole por completo no pântano da dúvida. O mestre Sherlock Holmes dizia que certos problemas exigem fumar três cachimbos para serem resolvidos. No que toca a determinados problemas, receio que alguns ainda estejam tentando acender o primeiro. Não vou alongar-me. Apenas dizer o seguinte: em sua análise que cobre o período de 2004 a 2007 (“Maputo mudou muito em quatro anos” diz Manolo Florentino). Não sabemos o que teria mudado em 4 anos. Não consegui ver o que nesse período de tempo mudou em Moçambique: Será porque o autor “viu” os “Lamborghinis, Mercedes, BMWs e Toyotas”? Mas essas marcas começaram a circular há pelo menos 20 anos, na posse de uma nascente burguesia com apetite devorador por bens de luxo. A mesma análise se aplica ás mansões. O autor lança mão de dados estatísticos sobre o país, dados que são reconhecidos por todos os organismos das Nações Unidas, mas os desqualifica de forma contundente, alertando os leitores para o fato de que “Toda (sic) estatística é aqui precária, e mesmo a população é estimada (sic)”. Informa os leitores que a “Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique, movimento que assumiu o poder em 1962, quando o país se tornou independente]”. Ora, o país tornou-se independente em 25 de Junho de 1975. Manolo Florentino antecipou a independência de Moçambique em 13 anos, fato histórico que, a ser verdadeiro, teria poupado uma guerra contra o colonialismo português que durou uma década, com o terrível cortejo de mortes e destruição de todo o tecido social moçambicano. O autor nos brinda a seguir com a maior surpresa, quando afirma que “Há no país entre 2 milhões e 3 milhões de descendentes de escravos, discretamente estigmatizados no dia-a-dia”. Quem são esses descentes de escravos de que nunca ouvi falar? Onde o autor buscou esta informação? Mais adiante nova surpresa. Manolo Florentino presenteia-nos sobre o lugar ocupado pela mulher moçambicana. Que ela tem um lugar subalterno em relação ao homem é indesmentível, apesar dos imensos avanços registrados no pós-independência. Mas daí a afirmar-se, como faz o autor de que “o cativeiro doméstico ainda hoje viceja”, é manifestamente um excesso e uma impropriedade. Outra informação surpreendente é a que refere as práticas de mutilação clitoriana em Moçambique. O autor informa que “Sem contar a miséria humana expressa por meio de milhares (sic) de meninas mutiladas pela excisão clitoriana”. Estamos perante uma inverdade. Em que o autor se baseou para nos dar esta informação? A África tem 54 paises e desses, segundo a Anistia Internacional, 29 têm essas práticas terríveis (Benin, Burkina Faso, Camarões, República Centro-Africana, Chade, Costa do Marfim, Egito, República Democrática do Congo, Djibuti, Eritréia, Etiópia, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Quênia, Libéria, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa, Somália, Sudão Tanzânia, Togo e Uganda). O autor partiu do fato de alguns países africanos terem essa prática, para generalizar e incluir também Moçambique. Mesmo em outros lugares, que não o continente africano, ocorrem essas práticas condenáveis como em vários países asiáticos (Índia, Indonésia, Siri-Lanka, Malásia), no Oriente Médio (Oman, Iémene e Emiratos Árabes Unidos). Ela é também praticada na América Central e do Sul, como por exemplo no Perú. Devido à imigração, países onde anteriormente não se praticavam essas mutilações, têm agora setores da população a praticá-la, incluindo: Austrália, Canadá, Dinamarca, França, Itália, Holanda, Suécia, Reino Unido e EUA. Por último Manolo Florentino diz-nos que “O capitalismo moçambicano se reproduz por meio da tradição”. A afirmação embora carregada de ambigüidades daria pano para mangas. Apenas duas perguntas: em que lugar do mundo não opera a tradição? O próprio capitalismo, em todo o lugar onde opera (praticamente todo o planeta), não tem vínculos com a tradição? O mundo tem necessidade de uma África sujeito e não mais objeto. Isto exige estudo e seriedade no tratamento das temáticas africanas. É neste sentido que um verdadeiro reencontro, fecundo poderia ter lugar em benefício de todos. Ilustração de Iléa Ferraz

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